Devemos ainda duvidar da legalidade do Copyleft?

Vera Albino 14 de novembro de 2017

O conceito de Copyleft teve origem no ativismo libertário do movimento de software livre, que juntou programadores de todo o mundo, no contexto da explosão de novas tecnologias, da Internet e da disseminação dos bens imateriais.

Criado por Don Hopkins e popularizado por Richard Stallman na década de 80 com o projeto GNU, o principal objetivo do Copyleft era a promoção da partilha livre de ideias e informação, bem como encorajar a criatividade.

Atualmente são utilizadas, distribuídas, alteradas e partilhadas milhares de obras sob a égide do Copyleft. Apesar de alguns juristas defenderem que não tem valor legal, não há dúvida de que o Copyleft tem um impacto real na criação, distribuição e partilha de obras. Surge então a questão: devemos ainda duvidar da legalidade do Copyleft?

Gráfica e semanticamente contrário ao Copyright, a legalidade do Copyleft é essencialmente posta em causa pela existência e evolução do Copyright (A). No entanto, o Copyright não evitou o surgimento da noção de Copyleft e ambos os instrumentos jurídicos revelaram-se ser, não contrários, mas complementares (B). Não obstante, o Copyleft acaba por afirmar-se como um conceito legal por direito próprio (C).

 

A. Origem e evolução do Copyright

A noção de Copyright surgiu pela primeira vez em Inglaterra, em 1710, com a votação da lei que ficou conhecida por Lei da Rainha Ana «Statute of Anne». Esta lei foi fortalecida e internacionalizada - em particular, pela sua exportação para os Estados Unidos da América - com o objetivo de responder às preocupações dos autores relativamente aos desafios decorrentes da invenção da impressão gráfica.

O Copyright tornou-se o instrumento legal para proteger os autores contra as cópias produzidas em massa, criando um monopólio legal para seu benefício, valorizando desta forma as suas obras intelectuais e encorajando a produção de obras.

Com o efeito imediato de recompensar os autores e, em última análise, promover o avanço do conhecimento de interesse geral, conforme estabelecido na cláusula de Copyright da Constituição Americana, o Copyright parece satisfazer os mesmos ideais que o Copyleft.

No entanto, sendo inicialmente um instrumento legal eficaz para promover a partilha de conhecimento, o Copyright revelou-se também uma arma temível nas mãos de autores que queriam impor custos proibitivos para a utilização das suas obras.

Uma reação dos tribunais americanos, protetores da Constituição, foi necessária para limitar juridicamente os efeitos perversos do Copyright, permitindo, ao mesmo tempo, a sua sobrevivência legal. Neste sentido, os tribunais criaram num novo conceito legal: o “fair use” (“utilização justa”).

O “fair use”, resultante da jurisprudência da década de 1920, estabelece um contexto legal que favoriza o equilíbrio entre os interesses individuais do autor e o interesse geral, possibilitando a utilização de obras protegidas por direitos de autor sem solicitar a autorização dos titulares desses direitos.

Este conceito, notável em termos de inventividade e modernidade, permitiu ao Copyright responder às exigências crescentes decorrentes do progresso rápido e constante da ciência e das tecnologias. Apesar disso, o “fair use” tendo por base a não autorização do autor, apresentou, desde a sua essência, uma fraqueza que limitou a sua utilização.

Apesar de o Copyright parecer adaptar-se a qualquer evolução, o desenvolvimento da Internet evidenciou uma incapacidade real para responder de forma eficaz aos novos desafios.

Na verdade, com a Internet, nasce um novo meio de comunicação e transmissão de obras, o que permitiu uma reprodução e distribuição mundial, gratuita e instantânea de obras e conhecimentos. Além disso, com a Internet, a identificação da pessoa responsável pelo dano tornou-se particularmente difícil.

Neste contexto, surgiu uma crescente necessidade de ferramentas jurídicas eficazes, capazes de responder às preocupações dos autores sobre os perigos de cópias instantâneas das suas obras e capazes de resolver disputas globais complexas.

Criado para a Internet, na Internet e por causa da Internet, o Copyleft apresentou-se como um conceito inovador.

 

B. O aparecimento do Copyleft e sua complementaridade com o Copyright

Considerado inicialmente como um projeto utópico confinado ao mundo do software, o Copyleft tornou-se uma realidade com a redação, em 1989, da Licença Pública Geral (GPL - General Public License).

A licença Copyleft é definida pelo GNU como um "método geral para tornar livre um programa (ou outra obra)" e exige que todas as alterações e versões alargadas do programa sejam também gratuitas.

Por outras palavras, trata-se de um método de gestão de obras, cuja principal finalidade é torná-las disponíveis: disponíveis para serem usadas, distribuídas e alteradas por qualquer utilizador. Da mesma forma, quando alteradas ou melhoradas, tornam-se por sua vez, e em virtude do Copyleft, necessariamente livres para utilização, estudo, distribuição e alteração.

À primeira vista, os princípios de Copyleft são contrários às prerrogativas dos titulares de Copyright. Mas serão estes dois conceitos realmente opostos?

Além de ambos terem sido criados num contexto de mudanças tecnológicas, para preencher lacunas legais existentes e para promover o conhecimento comum, ao estabelecer, ambos, um monopólio, responderam da mesma forma aos problemas existentes.

Com o Copyleft, foi apresentada uma noção mais romântica de monopólio: o monopólio da liberdade. No entanto, como qualquer outro monopólio, o monopólio da liberdade deverá ser desenvolvido num quadro legal que o proteja do uso indevido: a apropriação abusiva e exclusiva por terceiros de obras livres.

É a este nível que o Copyleft e o Copyright estão o mais intimamente ligados, uma vez que o Copyleft recorrerá ao Copyright para preservar as obras por ele geridas. Na realidade, o Copyleft consiste num Copyright clássico, ao qual são adicionadas cláusulas específicas de distribuição, sob a forma de licença, que os terceiros devem subscrever para poder usar as obras.

Desta forma, as obras licenciadas por Copyleft são livres tanto pelo livre acesso e utilização como pela sua capacidade de se proteger contra a sua apropriação exclusiva. Assim, o Copyright é o meio através do qual o Copyleft se desenvolve e atinge o seu pleno efeito.

 

C. Copyleft: um conceito legal para além do Copyright?

Originalmente confinado ao mundo da Internet, o Copyleft propagou-se gradualmente a outras áreas de conhecimento.

As licenças foram adaptadas ao conteúdo literário, artístico e científico e atualmente abrangem campos tão diversos como as sementes. O Copyleft parece ser a ferramenta mais adequada para áreas como a investigação científica, raramente motivadas por interesses económicos e muito mais preocupadas com a partilha e avanço do conhecimento e com a autoria das obras.

Desde a sua criação, o âmbito do Copyleft cresceu de forma constante e os litígios de referentes ao Copyleft têm sido contínuos nos tribunais dos EUA e da Europa, embora o ordenamento jurídico que o rodeia permaneça controverso.

Bem que a sua ligação ao Copyright seja um dado adquirido, alguns autores argumentam que é desejável torná-lo independente da propriedade intelectual, de modo a que o seu valor jurídico deixe de ser derivado ou contestado.

Para tal, os autores relembram que o Copyleft está intimamente ligado aos direitos fundamentais, como o direito à educação e o direito à cultura, e que existem inúmeros exemplos de textos de valor constitucional ou supranacional que podem ajudar a estabelecer uma base sólida para um regime legal autónomo. Podemos remeter para: a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a Carta Social Europeia do Conselho da Europa e a jurisprudência Europeia, a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, da UNESCO de 2005, entre outras.

No entanto, os tribunais americanos optaram por usar o princípio geral da liberdade contratual e a autonomia das partes.

A questão principal que se colocava era de saber se a Licença Copyleft tinha um valor contratual. Este valor foi negado por uma corrente jurídica substancial que considerou que, para que um contrato fosse formalizado, era necessária uma contribuição. O valor contactual do Copyleft foi também negado pelos tribunais, que aplicaram sanções às infrações dessas licenças por meio de uma violação de Copyright (consultar a decisão Jacobsen v. Katzer).

Esta resistência, no entanto, não conseguiu rebater os argumentos sólidos em contrário. Por um lado, o argumento de que a contribuição poderia ser encontrada em outras obrigações contratuais, por outro lado, tal contribuição não era um requisito necessário para a celebração do contrato na maior parte dos sistemas jurídicos do mundo.

De facto, um tribunal americano, na decisão Artifex Software V. Hancom, reconheceu recentemente o valor contratual da licença Copyleft GNUGPL. Embora, com esta decisão, o réu tenha sido obrigado a partilhar, em virtude da licença Copyleft, as alterações feitas ao software em questão, sobre as quais pensava ter exclusividade, esta decisão é positiva no sentido em que cria uma garantia legal adicional para todos aqueles que utilizam licenças gratuitas como o Copyleft. É também um indicativo de uma notória lacuna no sector empresarial que ignora os instrumentos jurídicos que utiliza.

Parece já não ser relevante questionar-se se o Copyleft é verdadeiramente legal, se existe realmente ou se é simplesmente uma utopia. Nasceu para responder a uma necessidade, uma debilidade, uma lacuna na lei, e teve efeitos reais desde a década de 1980, que não podem e já não são negados pelos Tribunais.

Por conseguinte, é importante que os agentes económicos tomem consciência da sua realidade, uma vez que, como no caso Artifex Software V. Hancom, ignorar a validade deste conceito legal compromete muitas vezes a proteção legal da propriedade intelectual e, portanto, a boa saúde dos negócios.


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