Pela boca morre Banksy: O “Atirador de Flores” não pode ser uma marca

Em 2014, a empresa Pest Control, que gere o património artístico de Banksy, registou o “Atirador de Flores” (“Flower Thrower”), enquanto Marca da União Europeia, identificando uma grande variedade de produtos e serviços, desde tintas, guarda-chuvas, calçado, jogos ou mesmo serviços de arte gráfica, entre muitos outros. No entanto, em 2019, a empresa britânica Full Colour Black apresentou um pedido de cancelamento de marca e, recentemente, o Instituto de Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO) concordou que esta deveria ser cancelada por ter sido registada com má-fé.

A empresa que pediu o cancelamento utiliza imagens de Banksy para vender cartões comemorativos, aproveitando-se da atitude permissiva de Banksy para reutilizar as suas obras, bem como da “liberdade de panorama” britânica que permite a reprodução de obras que se encontram exibidas em locais públicos.

Usando como pano de fundo diversos comentários feitos por Banksy, como por exemplo que “o direito de autor é para perdedores” (“copyright is for losers”), o Instituto concluiu que o registo foi feito com má-fé porque não existia uma verdadeira intenção de usar a marca como tal.

Juridicamente, a marca serve para identificar e permitir aos consumidores distinguirem entre produtos ou serviços de diferentes empresas; e tem de haver a intenção de usar a marca de forma séria para os produtos identificados sob pena de caducar. Mas Banksy, entre outros comentários, referiu que apenas estava a produzir produtos identificados pela marca (canecas, t-shirts, etc.) pela “razão menos poética possível”, i.e., a disputa pela marca que, entretanto, tinha começado. Para o efeito, chegou mesmo a abrir uma loja para vender os seus produtos.

O Instituto considerou ainda que o anonimato de Banksy e a natureza “ilegal” do graffiti têm resultado em dificuldades em efectivar os seus direitos de autor, o que levou Banksy – de má-fé – a efectuar o registo da marca para ter algum tipo de controlo sobre as utilizações comerciais das suas obras de arte, não sendo assim cumprida a função essencial da marca e tendo a mesma sido cancelada.

Esta curiosa decisão saltou várias vezes a fronteira entre o direito de marca e o direito de autor, que embora sejam direitos com amplitudes diferentes, muitas vezes se interceptam.

O Instituto acabou por denunciar a tentativa de monopolização da obra artística através do registo de marca, uma vez que foram apresentadas várias provas e comentários que demonstraram que Banksy não tinha uma verdadeira intenção de usar a marca para identificar produtos ou serviços, mas apenas garantir uma protecção que não conseguiria obter através do direito de autor.

O registo de uma obra enquanto marca é especialmente apetecível já que, se mantida de forma regular, dura ad aeternum, ao contrário do direito de autor que apenas dura até 70 anos após a morte do autor, o que iria permitir aos autores um controlo mais apertado das suas obras e sem qualquer limite temporal.

No entanto, há fundamentos da decisão que levantam dúvidas.

Em primeiro lugar, o Instituto baseia a decisão levantando vários problemas com a efectividade do direito de autor de Banksy sobre as suas obras, por causa do anonimato, da natureza “ilegal” do graffiti por ser feito em propriedade alheia ou ainda o facto de serem propositadamente colocadas em locais públicos. Mas todas estas razões são bastante discutíveis e apenas feitas em geral, sem qualquer tipo de análise casuística e que levantam uma perigosa suspeita: de que o graffiti é um tipo de obra menor, não passível de protecção por direito de autor.

Em segundo lugar, e pese embora o Instituto acabe por expressar que rejeita este fundamento, são, ainda assim, tecidas várias considerações sobre as opiniões de Banksy, que efectua uma crítica social ao direito de autor e que podem ter influenciado a decisão.

Pela boca morre o peixe. Em caso de recurso, o peso destas opiniões poderá ser atenuado pelos princípios de liberdade de expressão.

Ainda que estes fundamentos sejam pantanosos, a decisão tem o mérito de alertar para a existência de um limite para a protecção de obras através do registo de marcas. Independentemente das considerações de má-fé, a função principal da marca é permitir aos consumidores distinguirem entre produtos ou serviços e a única forma de garantir que tal acontece passa por assegurar que há uma verdadeira intenção de usar a marca para os produtos e serviços identificados no registo. Assim, não se deve descurar que este uso deva ser feito de forma genuína e séria e não apenas de forma episódica ou colateral.

 

Artigo publicado na Revista Marketeer (Outubro, 2020).


Anterior Próxima