Capitalismo vs. humanitarismo na luta pela vacina covid-19

A declaração de pandemia pelo SARS-CoV-2 (Covid-19) por parte da Organização Mundial da Saúde, em março de 2020, trouxe, com ela, o início de uma guerra feroz na indústria farmacêutica, na busca incessante pela vacina.

À data de hoje, encontram-se autorizadas as vacinas das farmacêuticas ​​Pfizer-BioNTech e Moderna. Adicionalmente, encontram-se em fase de ensaios clínicos (fase 3) as vacinas das farmacêuticas AstraZeneca, Janssen e Novavax. Todas elas, naturalmente, encontram-se protegidas por patente, querendo isto dizer que nenhuma outra entidade, salvo autorização expressa das titulares, tem a possibilidade de produzir e comercializar estas vacinas.

O Banco de Investimento Americano Morgan Stanley estima que as farmacêuticas Pfizer e BioNTech tenham, em 2021, um lucro de cerca de 13 mil milhões de dólares, só com a venda da vacina. Enquanto outras farmacêuticas adotaram a abordagem de não lucrarem com a venda das vacinas, a Pfizer acabou por não seguir a mesma via, tendo recusado um investimento por parte do governo dos Estado Unidos, ao investir com recursos próprios cerca de 2 mil milhões de dólares, juntando-se à alemã BioNTech para, em conjunto, chegarem à vacina que se encontra, atualmente, a ser administrada no Reino Unido e na União Europeia.

O direito à patente, tratando-se de um direito de exclusivo sobre invenções, determina a exploração económica destas pelo período de vinte anos por parte do seu titular, findos os quais, a invenção passa a ser de domínio público. A patente é, por isso, a atribuição de um direito de exclusivo (monopólio) por parte do Estado, onde apenas o seu titular tem a faculdade de produzir e comercializar a invenção. Em regra, os produtos farmacêuticos protegidos por patente são vendidos a um custo mais elevado relativamente ao custo de produção, com vista à obtenção de lucro, como compensação pelo investimento em I&D. A atribuição do direito à patente pretende alavancar a evolução tecnológica e científica, premiando o seu titular através do exclusivo de mercado.

 


"O direito à patente, tratando-se de um direito de exclusivo sobre invenções, determina a exploração económica destas pelo período de vinte anos por parte do seu titular, findos os quais, a invenção passa a ser de domínio público."


 

No entanto, o sistema de patentes, nomeadamente no que se refere às patentes farmacêuticas, colide com uma vertente ética comensurável: a do direito à saúde.

É possível verificar, nas patentes farmacêuticas, duas faces da mesma moeda: se por um lado se premeia o titular da patente pelo investimento no avanço científico e tecnológico, por outro contende-se o direito à saúde e o acesso a medicamentos a custos suportáveis. Neste sentido, numa petição liderada pela África do Sul e a Índia, com o atual suporte e pressão dos Médicos Sem Fronteiras, foi solicitada à Organização Mundial do Comércio a suspensão das regras relativas à proteção da propriedade industrial, durante o curso da pandemia de covid-19, principalmente no que se refere às patentes farmacêuticas respeitantes a vacinas e medicamentos adstritos ao combate à doença.

A petição, assinada por cerca de 100 países, pretende, com esta medida, o livre acesso às vacinas e medicamentos existentes para o combate à covid-19, protegidos por patente, por parte de países em desenvolvimento. Efetivamente, ao dia de hoje, é possível assistir à disponibilização em massa da vacina por parte dos governos da quase totalidade dos países europeus, Estados Unidos e Canadá. Em Portugal, como se sabe, o plano de vacinação da população teve início no passado dia 27 de dezembro [2020], tendo o Reino Unido assumido as rédeas da vacinação desde o início do mês, com o objetivo de imunizar a sua população contra o SARS-CoV-2.

Esta situação, infelizmente, não tem respaldo em países em desenvolvimento, onde grande parte dos governos não tem capacidade para adquirir lotes suficientes para imunizar toda a população, como tem acontecido em países mais ricos. Por esta razão, o apelo à Organização Mundial do Comércio foi feito no sentido de determinar a suspensão dos direitos de propriedade industrial, nomeadamente o direito à patente ou os segredos comerciais, com o objetivo de capacitar outras farmacêuticas a produzir e comercializar produtos genéricos das vacinas existentes e outros medicamentos de combate à doença a custos mais reduzidos e competitivos para, assim, poderem ser adquiridos por países com menos capacidade económica.

Conforme refere Mustaqeem De Gama, conselheiro da Comissão Permanente da Organização Mundial do Comércio da África do Sul, “esta proposta apresenta a abertura à colaboração, nomeadamente a da transferência de tecnologia, para que mais entidades assegurem a produção num curto espaço de tempo”. Os países mais desenvolvidos têm-se vindo a demonstrar muito críticos desta medida, nomeadamente o Reino Unido, os Estados Unidos, o Canadá e a União Europeia, opondo-se duramente à sua aplicação, defendendo que o sistema de propriedade industrial permite o avanço tecnológico e científico das vacinas, tratamentos e diagnósticos, e que o acordo TRIPS prevê já mecanismos legais que permitem o acesso a medicamentos por países mais carenciados, como é o caso das licenças compulsórias em casos de emergência de saúde pública, enquanto os países em desenvolvimento argumentam no sentido de que os países mais ricos beneficiam da vantagem tecnológica, científica e económica, contrariamente aos primeiros, que continuam a ser devastados pela pandemia.

Será o mecanismo das licenças compulsórias, ainda assim, suficiente, para o combate à pandemia de covid-19? Ainda que o acordo TRIPS preveja a faculdade de atribuição de licenças compulsórias (suspensão temporária do direito de exclusividade do titular de uma patente, permitindo a produção, uso, venda ou importação do produto patenteado, por um terceiro), certo é que estas são atribuídas caso a caso, atrasando o processo de escalada de produção industrial, um processo que se quer, neste momento, muito célere.

Este pedido surge apesar do incentivo Covax, um mecanismo internacional administrado pela Aliança para as Vacinas GAVI, em parceria com a Organização Mundial de Saúde e a Coligação para as Inovações de Preparação Epidémica (CEPI), com o objetivo de garantir a equidade na distribuição da vacina. Espera-se, com este incentivo, a distribuição de 2 mil milhões de doses da vacina a países mais carenciados no primeiro trimestre de 2021.

Neste momento, o mecanismo de distribuição tem acordos apenas com vacinas ainda em desenvolvimento, tendo já sido aprovada a compra antecipada da vacina à AstraZeneca, que se encontra a ser desenvolvida em conjunto com a Universidade de Oxford, e à empresa Indiana Serum Institute, ainda que esteja em fase de negociação a inclusão das vacinas já aprovadas pela Pfizer-BioNTech e Moderna.

Numa declaração pública, António Guterres, atual secretário-geral das Nações Unidas, denunciou a problemática da vacinação contra a covid-19 não chegar a países em desenvolvimento, como é o caso de vários países africanos, entendendo que a solução passará pelo apoio financeiro dos países mais ricos ao mecanismo internacional Covax.

Numa vertente mais humanista, parece ser defensável, no entanto, apenas a coexistência deste mecanismo em conjunto com o levantamento das regras relativas à propriedade industrial poderá materializar-se numa verdadeira ajuda que os países menos desenvolvidos carecem para combater a pandemia eficazmente.

Pergunta-se: se o capitalismo não cede na salvação da humanidade em situação de pandemia, quando cederá?

 

Artigo de opinião publicado originalmente no Expresso (26.01.2021).


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