Raízes Africanas e a Moda Global: Um Novo Paradigma Ético

A riqueza estética das culturas africanas tem sido uma fonte de inspiração constante para a moda global. Tecidos como o kente do Gana, o bogolanfini do Mali ou os padrões vibrantes do ankara nigeriano são apenas alguns exemplos de elementos visuais que se tornaram ícones mundiais - muitas vezes presentes nas passarelas de Paris, Nova Iorque ou Milão.
Nos últimos anos, tornou-se cada vez mais evidente que existem duas vias muito distintas pelas quais estas influências chegam ao mercado internacional. Por um lado, vemos marcas que se apropriam de expressões culturais africanas sem consentimento, reconhecimento ou compensação - práticas que levantam sérias questões éticas e legais, sobretudo no que toca à proteção da autoria e do património cultural. Por outro, há empresas que optam por colaborar diretamente com criadores africanos, comunidades locais ou artesãos, reconhecendo a autoria, partilhando benefícios e contribuindo para o fortalecimento das economias locais. Esta segunda via não só é mais justa, como tem demonstrado ser mais sustentável e estrategicamente inteligente, criando valor autêntico para todos os envolvidos.
Dois caminhos: apropriação ou colaboração
Embora a moda internacional tenha, por vezes, apropriado símbolos africanos sem reconhecimento ou benefício para os seus criadores, multiplicam-se hoje os exemplos de colaborações respeitosas com designers africanos. Estas parcerias permitem não só integrar referências culturais de forma ética e significativa, valorizando a sua origem e autenticidade, como também geram produtos mais apelativos para os consumidores em geral - e para os consumidores africanos em particular - aumentando a probabilidade de sucesso comercial. Além disso, estas colaborações oferecem acesso a novos públicos e constituem uma oportunidade para as marcas se diferenciarem no mercado, com artistas africanos a tornarem-se apostas seguras. Ao mesmo tempo, estas parcerias reforçam a responsabilidade social das marcas e contribuem positivamente para a sua imagem e reputação, aumentando o goodwill junto dos diversos stakeholders.
Um ponto fundamental neste contexto é a proteção dos direitos de propriedade intelectual que garantem aos criadores africanos a autoria e o controlo sobre as suas criações, permitindo-lhes negociar parcerias justas e evitar abusos. Reconhecer e proteger estes direitos é um passo decisivo para que as colaborações sejam realmente equitativas e sustentáveis.
Casos de sucesso: quando a moda global respeita as raízes
Valentino x MaXhosa by Laduma (2020)
A Valentino colaborou com o designer sul-africano Laduma Ngxokolo, criador da marca MaXhosa, conhecida pelos seus padrões inspirados na cultura Xhosa. Esta parceria valorizou o artesanato e os motivos africanos num contexto de alta-costura, respeitando a autoria e a originalidade da criação.
Hermès x Ardmore Artists (2016)
Em 2016, a Hermès lançou um lenço de seda exclusivo criado em colaboração com os Ardmore Artists, um coletivo sul-africano conhecido pelas suas cerâmicas vibrantes e fortemente enraizadas na iconografia zulu. O padrão escolhido, intitulado La Marche du Zambèze, apresentava uma composição rica de flora e fauna africanas, reinterpretadas com a estética exuberante dos artistas de Ardmore. Esta parceria não só deu visibilidade internacional ao coletivo como representou uma valorização clara do trabalho artístico africano, com reconhecimento criativo e benefícios partilhados.
Dior x Amoako Boafo (2021)
Para a coleção masculina Primavera/Verão 2021, a Dior uniu-se ao artista ganês Amoako Boafo, cuja obra retrata com intensidade a identidade negra contemporânea. A colaboração, liderada por Kim Jones, resultou numa coleção onde os retratos expressivos de Boafo foram integrados diretamente nas peças - transformando as suas pinturas em estampados têxteis. Esta aliança destacou-se pelo respeito mútuo entre moda e arte, bem como pelo reconhecimento pleno da autoria de Boafo, cujo nome e estética foram centrais na narrativa da coleção.
Chanel x Abloh x Amoako Boafo (2021)
Embora a colaboração de Amoako Boafo com a Dior tenha sido sobretudo focada em vestuário, a sua forte expressão artística e as influências de Virgil Abloh - que celebrou símbolos e estéticas africanas - têm vindo a inspirar outras grandes casas de luxo, como a Chanel. Estas marcas começam a incorporar estampas vibrantes e cores típicas africanas nas suas coleções de acessórios, trazendo a riqueza cultural do continente para o centro do mundo da moda.
Prada x Sindiso Khumalo (2019)
Na coleção Primavera/Verão 2019, a Prada uniu forças com a designer sul-africana Sindiso Khumalo, reconhecida pelo seu compromisso com a sustentabilidade e pelo uso de tecidos e padrões tradicionais africanos. Esta colaboração trouxe para a passerelle uma fusão única entre a elegância italiana e a autenticidade da arte africana, destacando a beleza e o valor do património cultural do continente no cenário global da moda.
Colaborações em Destaque em 2025
Imane Ayissi na Paris Haute Couture Week
O designer camaronês Imane Ayissi apresentou na Paris Haute Couture Week de 2025 uma coleção que celebrou a herança africana através do uso de tecidos tradicionais como o kente e o rafia. Ele reinterpretou vestidos tradicionais africanos, como o kaba, com influências de outras culturas, criando uma fusão única de estilos. Sua abordagem destaca a importância de respeitar e valorizar as tradições culturais na moda contemporânea.
Marine Serre na Paris Fashion Week
Na Paris Fashion Week de 2025, a designer francesa Marine Serre lançou uma coleção que destacou a fusão entre o futurismo europeu e as estampas e tecidos tradicionais africanos, como o ankara e o bogolanfini. Serre colaborou com artesãos africanos para criar peças que celebram a sustentabilidade e a diversidade cultural, respeitando as raízes africanas ao integrar padrões vibrantes e técnicas ancestrais em silhuetas modernas. Esta coleção exemplifica a crescente tendência na Europa de valorizar parcerias autênticas que promovem a riqueza cultural africana na moda contemporânea.
A Relevância da Propriedade Intelectual na Proteção Cultural
A proteção da propriedade intelectual é um elemento central para garantir que expressões culturais tradicionais africanas - como padrões têxteis, técnicas artesanais, símbolos visuais e motivos artísticos - sejam reconhecidas, respeitadas e valorizadas no mercado global da moda. Num setor onde a criatividade e a originalidade são os principais ativos, assegurar a titularidade dos direitos é essencial para proteger os criadores africanos da apropriação indevida e para promover colaborações mais equilibradas.
Instrumentos como o direito de autor, as marcas, os desenhos e modelos industriais e, em alguns casos, as indicações geográficas, podem e devem ser mobilizados para proteger expressões culturais sensíveis, tanto no plano individual (por criadores e artistas) como no plano coletivo (por comunidades ou associações culturais). Para além da função jurídica de exclusividade, estes direitos servem como alavanca negocial, permitindo aos titulares estabelecer parcerias mais justas e garantir benefícios económicos e reconhecimento de forma transparente.
A título ilustrativo, o coletivo Ardmore Artists, envolvido na colaboração com a Hermès em 2016, registou previamente vários dos seus padrões e desenhos como desenhos industriais. Este registo permitiu proteger a originalidade dos seus motivos decorativos e reforçar a sua posição contratual aquando da negociação com a casa francesa. Com esse enquadramento, foi possível assegurar o reconhecimento da autoria e a partilha dos lucros, para além de salvaguardar futuras utilizações não autorizadas das suas obras.
Criação Individual vs. Herança Coletiva
As colaborações entre artistas africanos e casas de moda internacionais trazem à tona um desafio complexo no âmbito da propriedade intelectual: a distinção entre criação individual e património coletivo. Nem todas as expressões culturais tradicionais são de propriedade exclusiva dos artistas que as incorporam nas suas obras, pelo que surge a questão ética sobre a legitimidade da apropriação dessas expressões. Muitas vezes, os símbolos, técnicas e saberes são parte integrante de comunidades específicas, refletindo uma herança coletiva que transcende o indivíduo.
A linha que separa a criação pessoal do património comum é, por isso, subtil. De um lado, um artista pode reinterpretar e inovar a partir de elementos culturais tradicionais; do outro, existe o risco de se apropriar indevidamente de um património que pertence a uma comunidade, sem o devido reconhecimento, consentimento ou benefício partilhado. Esta análise acarreta uma profunda responsabilidade cultural.
Moda Global com Ética e Respeito
O panorama atual da moda global coloca-nos perante uma escolha: continuar a perpetuar a apropriação cultural ou promover colaborações genuínas que valorizem a riqueza das culturas africanas. Unir a criatividade e autenticidade dos artistas africanos com mecanismos eficazes de proteção intelectual permite criar um mercado mais justo, inovador e sustentável - onde a diversidade cultural é fonte de inspiração, mas também respeitada e protegida. Por isso, investir na proteção da propriedade intelectual é fundamental para garantir que a moda inspire sem nunca apropriar, assegurando reconhecimento, justiça e benefícios partilhados.
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