Rascunhos e questões da Inteligência Artificial e as obras por si geradas

A Inteligência Artificial já escancarou a porta da nossa realidade e nós nem sequer demos conta. Desengane-se quem pensa que um mundo dotado de autonomia tecnológica sem auxílio humano permanente é uma utopia ou um assunto de outros séculos. A verdade é que talvez enfrentemos e vivamos um século onde as grandes questões da sociedade necessitam de alguma orientação. As perspectivas, contudo, são cinzentas e desfocadas, com culpa, potencialmente, dos governos que e dos grandes interesses capitalistas, que preferem analisar as estatísticas de produção e valores envolvidos do que discutir os problemas éticos e sociológicos subjacentes a uma realidade em expansão.

Prevê-se que a Inteligência Artificial venha a substituir a maioria das profissões que hoje conhecemos. Necessitamos de repensar os seus limites e delimitar fronteiras e rumos antes que seja tarde de mais – necessitamos de renovar a sociedade sem calamidades. A Propriedade Intelectual, feliz ou infelizmente, encontra-se no centro da discussão, a par dos problemas éticos de personificação das máquinas. A IA já começa a auxiliar o dia-a-dia dos Institutos, e até já existem impulsos com o intuito de substituir os mesmos por tecnologia consistente e segura. As restantes profissões que hoje conhecemos serão substituídas por máquinas inteligentes, como é o caso do supercomputador da IBM, Watson, que foi capaz de produzir um trailer tendo em conta uma base de dados de 100 filmes que permitiu que se apercebesse das emoções presentes nas sequências dos mesmos, como o suspense, a tristeza, o drama, etc., transportando esse conhecimento para produzir ele próprio um trailer após a análise do filme “Morgan". As empresas e os profissionais na realização de trailers terão aqui um concorrente à altura que, com certeza, irá produzir um trailer em menos horas de trabalho. Ainda assim, creio que as profissões artísticas se irão aguentar pela imposição e diversidade do público que, apesar de tanta tecnologia, irá prezar o toque humano, embora cada vez mais raro.

É necessário ainda analisar a estrutura legal da Propriedade Intelectual, mais ou menos harmonizada por todo o mundo, que necessita de ser repensada quando analisamos a dificuldade de patentear softwares ou quando nos apercebemos da falta de protecção que existe quando haja invenções e obras criadas por não humanos. É nestas últimas que nos focaremos em seguida.

 

Tipos de obras Geradas por computadores

A doutrina costuma distinguir 3 tipos de situações aquando da criação de uma obra com recurso a um computador:

  1. Obras criadas com auxílio de um Computador;
  2. Obras mistas;
  3. Obras criadas por um Computador.

A primeira situação não varia da clássica utilização de um bloco e de uma caneta. Neste caso, um processador de um texto não cria uma obra sem os inputs do seu utilizador, que não variavam quer estivesse a utilizar um papel, um quadro ou um programa.

As obras mistas, por outro lado, acontecem quando há algum contributo do programa mas que não existe autonomia na sua execução.

A última categoria, que é objeto deste artigo, é accionada quando o computador por si só é capaz de criar uma obra com um simples botão. Dentro desta mesma categoria, é possível subdividir em pelo menos duas outras para distinguirmos os casos onde são predefinidas situações e o computador escolhe de entre essas alternativas e das outras em que o programador não as definiu e não podia ter certeza do seu resultado.

 

Obras Geradas por IA e os seus autores

Tendencialmente, as obras geradas por IA enquadram-se na última categoria abordada no tópico anterior. No entanto – e antes de prosseguirmos com esta análise crítica –, é necessário ter em conta que a posição dominante no Direito de autor é aquela que encara o autor como um ser humano que imprime uma expressão original e criativa. No caso das máquinas dotadas de inteligência artificial que criam algum tipo de obra comparável às obras criadas por humanos, suscita-se o problema de quem é que deve ser considerado o autor da obra e quem deve ser considerado o seu titular. Evidentemente que ambas as questões podem ser enquadradas na esfera do utilizador ou do programador. No caso do Reino Unido, a autoria é atribuída à pessoa “by whom the arrangements necessary for the creation of the work are undertaken".

As teorias que defendem a autoria tanto do utilizador como do programador centram-se na proximidade que cada um tem sobre a obra final. No entanto, parece-nos que cada vez mais vai ser difícil aplicar essas mesmas teorias quando começa a ser possível que uma máquina inteligente crie, por exemplo, outra máquina que porventura cria uma obra. Parece-nos que a atribuição de autoria ao utilizador ou ao programador já se encontra longe neste cenário, que talvez nem o programador pensasse ser possível. Para além disso, encontramos diversas dificuldades interpretativas para aceitar a autoria de uma obra gerada por computadores em diversas jurisdições. Apesar do percurso natural ser a incorporação desta modalidade nas legislações, acreditamos que o domínio público é algo que não deve ser descartado à partida – caso contrário, encontraremos monopólios e situações que não conseguiremos resolver a não ser que se percam por completo as concepções centrais dos Direitos de autor. Veja-se, por exemplo, o caso muito difundido da empresa russa Qentis que, através de uma força computacional enorme, pretende criar um algoritmo capaz de gerar todos os textos possíveis com 400 palavras. Ora, a atribuição de Direitos de autor, nesta situação, sobre todos os textos possíveis de escrever com 400 palavras a uma entidade ou a uma pessoa desvirtua por completo o intuito de protecção do comum autor de uma obra. Em última instância, uma máquina será capaz de criar todos os textos possíveis e imaginários. No dia em que isso aconteça, mesmo para quem defenda o domínio público das obras geradas por computador, existirá um problema fulcral proveniente da falta de originalidade do comum autor que não estamos, nem de perto nem de longe, aptos para resolver.

A própria concepção de originalidade sempre mostrou diversos obstáculos interpretativos. Para a sua interpretação, surgiram teorias subjectivas e objectivas. Para a primeira, a obra deve conter pedaços da personalidade do seu criador: um cunho pessoal do mesmo. Esta perspetiva, como se calcula, não serve, e dela não se extrai resultados satisfatórios em diversas situações. Por outro lado, uma teoria objetiva que se coordena pela unicidade peca por atribuir originalidade a todo o tipo de obras que sejam consideradas únicas. Uma mistura de ambas as teorias, baseada no esforço intelectual, tem sido proposta como um balanço entre os benefícios das duas teorias. Contudo, é este esforço intelectual que permite que o programador, em muitos casos, seja considerado autor das obras geradas por computador.

Deste modo, e em última instância, mais importante, a nosso ver, que discutir quem deve ou não deve ser considerado autor de uma obra gerada por computador, é indagar e escrutinar qual é o conceito de originalidade que devemos seguir num futuro onde aquilo que um comum ser humano escreva já se encontra algures numa base de dados com acesso público.

 


MEETING OF INTELLECTUAL PROPERTY OFFICES (IPOS) ON ICT STRATEGIES AND ARTIFICAL INTELLIGENCE (AI) FOR IP ADMINISTRATION, Geneva, May 23 to 25, 2018

A KODAK lançou uma plataforma “KODAKOne que pretende ser uma plataforma que gere “Image rights” licenciando a terceiros, e dotada de um sistema de vigilância que, inclusive, apresenta um orçamento aos infractores que utilizem imagens registadas no sistema sem a devida autorização. http://theconversation.com/kodakone-could-be-the-start-of-a-new-kind-of-intellectual-property-89966

http://www.wired.co.uk/article/ibm-watson-ai-film-trailer

Daniel J. Gervais, The Protection Under International Copyright Law of Works Created with or by Computers pág 641

Article 9(3) of the UK’s Copyright act


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