O prestígio de uma DOP: o caso do vinho do Porto

Provavelmente a denominação de origem mais famosa em Portugal é a denominação de origem Porto, que identifica um vinho licoroso produzido na região demarcada do Douro, sob condições peculiares derivadas de fatores naturais e fatores humanos.

Este vinho distingue-se dos vinhos comuns por ter uma enorme diversidade de tipos em que surpreende uma riqueza e intensidade de aroma incomparáveis, pelo seu aroma e o seu sabor ter uma persistência muito elevada e, ainda, por ter um teor alcoólico elevado compreendido entre os 19 e os 22% vol., uma vasta gama de doçuras e uma grande diversidade de cores.

Consagrada a qualidade inigualável do vinho do Porto, a mesma reflete-se em decisões proferidas pelos tribunais judiciais e administrativos que discutem a propriedade intelectual, área do Direito da qual fazem parte as indicações geográficas e as denominações de origem.

A denominação de origem (DO) é utilizada quando uma zona geográfica informa o consumidor sobre a origem ou a proveniência de um produto e garante que o produto reúne determinadas características e qualidades específicas justamente por ser produzido, transformado e elaborado nesta determinada zona. O registo da DO torna-a um direito de propriedade industrial e possibilita que todos os produtores que cumpram o caderno de especificações da DO possam utilizá-la e também reagir contra utilizações indevidas e abusivas em produtos que a desprestigie.

 

Breve Introdução sobre a DOP Porto

Esta região foi a primeira região vinícola demarcada e regulamentada do mundo, ainda no início da segunda metade do século XVIII, e, desde então, tem se desenvolvido uma rigorosa disciplina da produção, do comércio, do controlo, da certificação, da proteção e da defesa da denominação de origem Porto.

Atualmente a gestão desta DOP está sob o encargo do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, I. P. (IVDP, I. P.), o qual vem realizando um exaustivo trabalho de controlo aos vinhos do Porto, em todo o mundo. Sobre este assunto, vale a pena conferir a matéria recente publicada no Agroportal[1].

Em âmbito nacional, o Decreto-Lei n.º 173/2009 sistematizou a matéria através da aprovação do Estatuto das denominações de origem e indicação geográfica da Região Demarcada do Douro, o qual já passou por algumas alterações, e, recentemente, foi aprovado o Regulamento de Proteção e Apresentação das Denominações de Origem e Indicação Geográfica da Região Demarcada do Douro e das Categorias Especiais de Vinho do Porto, através do Regulamento (extrato) n.º 3/2022.

A DOP Porto encontra-se protegida desde 24 de dezembro de 1991, sob o n.º PDO-PT-A1540, e por autorização da Direção Geral da Agricultura e do Desenvolvimento Rural da Comissão Europeia. Atualmente a sua proteção está alargada a diversos países pelo mundo – nomeadamente, Estados Unidos da América, Chile, China, Japão e Austrália – o que significa que nenhum produtor pode utilizar a denominação “Porto” para identificar vinhos, ou outras bebidas alcoólicas, que não cumpram o caderno de especificações desta DOP. Além disso, a proteção inclui as designações “Port”, “vinho do Porto”, “Port Wine”, “vin de Porto”, “Oporto”, “Portvin”, “Portwein” e “Portwijnpdo”.

 

DOP Porto e a recente decisão do TGUE

Em outubro de 2021, nos autos do Processo T-417/20, o Tribunal Geral da União Europeia negou provimento ao recurso da decisão da Segunda Câmara de Recurso do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO, em inglês), de 21 de abril de 2020 (processo R 993/2019-2), relativa a um processo de reclamação que teve origem no EUIPO.

 

  • Decisões prévias do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO)

Tudo começou em janeiro de 2017, com o pedido de registo da marca da União Europeia n.º 016308462 - PORTWO GIN, para identificar “bebidas espirituosas”, na classe 33, perante o EUIPO.

Após a publicação da marca no Boletim da Propriedade Intelectual, abre-se o prazo de três meses para que qualquer interessado apresente reclamação ao pedido de registo de marca em apreço, tendo o titular da DOP Porto aproveitado a oportunidade para o fazer, através da reclamação n.º 002881061, junto ao EUIPO.

O reclamante utilizou como base da sua fundamentação a DOP Porto (também “Port”), em conformidade com o artigo 8.º, n.º 6, do Regulamento (UE) 2017/1001 sobre a marca da União Europeia, em cumulação com o artigo 103.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.º 1308/2013 sobre a organização comum dos mercados dos produtos agrícolas e que revoga regulamentos anteriores, os quais dispõem que:

 

Art. 8.º. n.º 6, Reg. 2017/1001: Mediante oposição de qualquer pessoa autorizada ao abrigo da legislação aplicável a exercer os direitos decorrentes de uma denominação de origem ou de uma indicação geográfica, o pedido de registo da marca é rejeitado caso, e na medida em que, de acordo com a legislação da União ou com o direito nacional que prevejam a proteção de denominações de origem ou de indicações geográficas:

i) já tenha sido apresentado um pedido de denominação de origem ou de indicação geográfica, em conformidade com a legislação da União ou com o direito nacional, antes da data do pedido de registo da marca da UE ou da data do direito de prioridade invocado para o pedido, sob reserva do seu registo subsequente,

ii) essa denominação de origem ou essa indicação geográfica confira o direito de proibir a utilização de uma marca posterior.

 

Art. 103.º, n.º 2, Reg. 1308/2013: As denominações de origem protegidas e as indicações geográficas protegidas, bem como os vinhos que utilizem esses nomes protegidos em conformidade com o caderno de especificações, são protegidos contra:

a) Qualquer utilização comercial direta ou indireta do nome protegido:

i) por produtos comparáveis não conformes com o caderno de especificações do nome protegido;

ii) na medida em que tal utilização explore a reputação de uma denominação de origem ou de uma indicação geográfica;

b) Qualquer utilização abusiva, imitação ou evocação, mesmo que a verdadeira origem do produto ou serviço seja indicada ou que o nome protegido seja traduzido, transcrito ou transliterado ou acompanhado de termos tais como "género", "tipo", "método", "estilo", "imitação", "sabor", "modo" ou similares;

c) Qualquer outra indicação falsa ou falaciosa quanto à proveniência, origem, natureza ou qualidades essenciais do produto, no acondicionamento ou na embalagem, na publicidade ou nos documentos relativos ao produto vitivinícola em causa, bem como contra o acondicionamento em recipientes suscetíveis de dar uma impressão errada quanto à origem do produto;

d) Qualquer outra prática suscetível de induzir o consumidor em erro quanto à verdadeira origem do produto.

 

O EUIPO considerou que não haveria utilização comercial direta nem indireta da DOP Porto, uma vez que o público consumidor leria a marca reclamada como um sinal único e não perceberia no sinal em causa qualquer referência geográfica ao vinho do Porto.

O Instituto da UE ainda referiu que devido à presença do termo “gin” o consumidor nunca associaria a marca “PORTWO GIN” ao vinho do Porto, especialmente em razão das diferentes características destas bebidas.

Com base nos argumentos de inconfundibilidade entre a DOP e a marca registanda, o Instituto também afastou a possibilidade de que o requerente da marca estaria a utilizar indevidamente a DOP num contexto inadequado que poderia, por exemplo, prejudicar a reputação de uma DOP de qualidade.

Insatisfeito com a decisão do EUIPO, o reclamante recorreu da decisão e, em resposta ao recurso, o titular do pedido de registo da marca PORTWO GIN apresentou argumentos pela manutenção da decisão do Instituto da UE.

Após analisar a fundamentação de cada uma das partes, a Segunda Câmara de Recurso do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia julgou procedente o recurso n.º R 993/2019-2 e anulou a decisão do processo de reclamação n.º 002881061.

A Câmara excluiu a aplicação do artigo 103, n.º 2, alínea a, “i”, e alínea “b”, do Regulamento (UE) n.º 1308/2013, uma vez que os produtos em causa – gin e vinho do porto – não são considerados comparáveis, pois este critério abrange bebidas que apresentam características objetivas comuns e que são consumidas, do ponto de vista do público relevante, em ocasiões amplamente idênticas; além de serem frequentemente distribuídas pelos mesmos canais e sujeitos a regras de marketing semelhantes. Portanto, não deve ser utilizado o critério da comparação de produtos/serviços entre marcas semelhantes.

A partir dos elementos de prova apresentados pelo titular da DOP Porto, a Câmara considerou que Porto é um dos melhores e mais prestigiosos vinhos do mundo, por isso goza de reputação na aceção do artigo 103, n.º 2, alínea a, “ii”, do Regulamento (UE) n.º 1308/2013.

A Câmara concluiu que houve uso direto da DOP pela marca registanda, a partir das seguintes observações: identidade das quatro primeiras letras “PORT” entre os sinais; termo “gin” era descritivo dos produtos que a marca pretendia identificar; parte do público relevante da UE poderia considerar que a letra “w” na marca registanda seria um erro ortográfico; foneticamente, pelo menos na língua francesa, a pronúncia dos termos “portwo” e “porto” é idêntica.

Em razão do alto grau de semelhança entre os sinais e da reputação da DOP Porto, a Câmara concluiu que seria provável que o consumidor relevante estabelecesse uma associação entre a marca PORTWO GIN e a DOP Porto.

Por fim, a 2ª Câmara de Recurso referiu que a tentativa de associação entre os sinais visava evidentemente obter vantagem indevida em relação à reputação da DOP Porto pela marca registanda, uma vez que induziria o consumidor a acreditar que as bebidas espirituosas do requerente cumprem os estritos requisitos e padrões de qualidade da DOP Porto, aumentando a capacidade da marca de se destacar entre seus concorrentes, o que seria vantajoso no contexto da comercialização e venda de gin.

 

  • Decisão do Tribunal Geral e possíveis consequências

Desta vez, quem ficou insatisfeito com a decisão foi o titular do pedido de registo da marca PORTWO GIN, o qual apresentou recurso da decisão ao Tribunal Geral da União Europeia, e no processo também intervieram o EUIPO e o titular da DOP Porto.

O TGUE utilizou como base da sua fundamentação, essencialmente, três decisões do Tribunal de Justiça que envolveram o Comité Interprofessionnel du Vin de Champagne [2], a Scotch Whisky Association [3] e o Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto [4].

Assim, no processo T‑417/20, o Tribunal Geral concordou com todos os fundamentos da 2ª Câmara de Recurso do EUIPO, confirmando a sua decisão.

Decorrido o prazo de apresentação de recurso para o Tribunal de Justiça, tribunal de segunda instância do Tribunal de Justiça da União Europeia, sem manifestação por parte do titular da marca POTWO GIN, o processo encontra-se encerrado.

Cumpre referir que atualmente encontra-se suspenso o processo de reclamação n.º 003089806, junto ao EUIPO, que aguardava a decisão do processo T-417/20, uma vez que se trata de novo litígio entre as mesmas partes, desta vez em relação ao pedido de registo da marca da União Europeia n.º 018062956 - PORTWO BEER. Considerando a decisão final do Tribunal Geral sobre o caso acima delineado, em primeira instância o EUIPO deverá mudar de opinião em relação à decisão no processo anterior e, desta vez, decidir de acordo com o entendimento da 2ª Câmara de Recurso do próprio EUIPO, confirmado pelo TGUE.

 

Conclusão

Conclui-se que a denominação de origem é um direito de propriedade industrial, amparado em bases legais que preveem a possibilidade de que uma DO possa impedir a existência de outro direito em razão da perceção do consumidor relevante, bem como dos esforços empregues pelo titular da DO na proteção do seu negócio.

A conferência do direito de que um produtor específico utilize como marca uma menção com alto grau de semelhança a uma denominação de origem protegida poderia comprometer uma concorrência livre e não falseada no mercado interno entre os produtores de produtos que ostentam essa menção e, em particular, seria suscetível de prejudicar os direitos que devem ser reservados aos produtores que fizeram esforços qualitativos reais para poderem utilizar uma denominação de origem registada ao abrigo da legislação da União Europeia.

Acresce que, se for o caso de uma menção de renome, como no caso analisado, além dos prejuízos destacados, verifica-se o aproveitamento do prestígio para alcançar posição de destaque em relação à concorrência e, ainda, a possibilidade de depreciação da reputação da denominação de origem protegida, a qual é construída ao longo de anos pelo titular do direito e pelos produtores que a utilizam.

 


[1] AGROPORTAL, IVDP anuncia exaustiva ação de controlo a vinhos do Porto investigados na Holanda, 14 jan. 2022. Disponível em: <https://www.agroportal.pt/ivdp-anuncia-exaustiva-acao-de-controlo-a-vinhos-do-porto-investigados-na-holanda/>.

[2] TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Comité Interprofessionnel du Vin de Champagne, 20 dez. 2017, C‑393/16, EU:C:2017:991.

[3] TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Scotch Whisky Association, 7 jun. 2018, C‑44/17, EU:C:2018:415.

[4] TRIBUNAL DE JUSTIÇA, EUIPO v Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, 14 set. 2017, C‑56/16 P, EU:C:2017:693. Nesta oportunidade, o IVDP não obteve sucesso no pedido de declaração de nulidade da marca internacional, com designação na União Europeia, PORT CHARLOTTE.


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