Propriedade Intelectual - Uma história de duas PME

Todos os anos, desde o ano 2000, celebra-se, no dia 26 de abril, o Dia Mundial da Propriedade Intelectual. Todos os anos, a Organização Mundial da Propriedade Intelectual escolhe um tema para esta celebração. Em 2021, o tema escolhido foi a importância da propriedade intelectual (PI) para as pequenas e médias empresas (PME), quando levam as suas ideias ao mercado.

A PI não é necessariamente decisiva no sucesso de uma PME. É possível uma PME ter sucesso empresarial sem que proteja os seus produtos, e é também possível que uma PME proteja os seus produtos e não tenha sucesso empresarial. No entanto, quando uma PME introduz um produto no mercado, o seu comportamento em relação à PI pode ser determinante.

A história cautelar de duas PME fictícias contada abaixo, tenta evidenciar essa importância.

 

Os direitos de propriedade intelectual

Duas PME, a PME-A e a PME-B investem, separadamente, alguns milhares de euros no desenvolvimento de um produto de calçado. Os produtos das duas PME são sapatilhas inovadoras. 

As da PME-A permitem que o utilizador receba informação sobre a sua atividade durante a utilização, como, por exemplo, a distância percorrida e a velocidade. Esta e outra informação é recebida pelo utilizador numa aplicação criada pela PME-A. Já as sapatilhas da PME-B têm uma solução técnica que permite ao utilizador ter informação sobre a sua forma de caminhar e correr, também numa aplicação criada para o efeito.

Para além destas inovações técnicas, para ambas as sapatilhas são criados designs singulares. Por fim, as duas PME criam, cada uma, uma marca para o seu novo produto. Os produtos estão prontos para serem comercializados. A PME-B, impaciente para cobrir os custos que teve com o desenvolvimento do produto e começar, talvez, a ter lucro, introduz o produto no mercado. O produto é um sucesso imediato e a PME-B fica satisfeita.

Por outro lado, a PME-A, antes de introduzir o produto no mercado, procura junto de um Agente Oficial da Propriedade Industrial (AOPI) auxílio para proteger o seu produto. O AOPI informa a PME-A que o seu produto inclui vários bens intelectuais que podem ser objeto de propriedade intelectual. A solução técnica que permite que o utilizador seja informado da sua atividade com as sapatilhas através da aplicação é uma invenção, pelo que poderá ser patenteada, se for nova e suficientemente inventiva em relação às invenções já conhecidas no mundo. O design das sapatilhas (o seu aspeto) poderá ser protegido através do registo de desenho ou modelo, desde que seja novo e tenha um carácter singular em relação a qualquer design já conhecido. Os textos, músicas e outros conteúdos criados para a aplicação e a própria aplicação, em parte, serão protegidos por direito de autor, desde que sejam novos e originais. Por fim, o AOPI indica que a marca poderá ser protegida através do registo de marca, na medida em que não exista já marca registada semelhante ao ponto de as duas serem confundíveis para os consumidores.

Ao ouvir toda esta informação a PME-A duvida se deverá usar mais recursos financeiros neste produto. O investimento no seu desenvolvimento foi elevado e ainda não introduziu o produto no mercado, pelo que ainda não reaveu qualquer parte do investimento. Estes gastos adicionais poderão ser insuportáveis.

Enquanto isto, a PME-B continua a comercializar o seu produto inovador com sucesso e a lucrar, sem que tenha tido quaisquer custos de PI.

 

 


"(...) Poderá começar por apresentar pedidos de proteção apenas em Portugal, tendo depois daqueles pedidos um ano para pedir patentes e seis meses para pedir registos de desenho e registos de marca, noutros países. Os pedidos internacionais e regionais diminuirão os custos e procedimentos".


 

A obtenção de direitos de propriedade intelectual

A PME-A acaba por aceitar as recomendações do AOPI e fica a saber como obter propriedade intelectual sobre os bens intelectuais identificados. Com exceção do direito de autor, que existe a partir do momento da criação das obras, os restantes bens intelectuais apenas serão protegidos com a concessão, por uma entidade administrativa, de uma patente para a invenção (solução técnica) e de registos para o design e para a marca. O AOPI recomenda ainda o registo das obras já protegidas por direito de autor pois, apesar de o direito já existir, a prova da sua autoria poderá ser difícil sem registo.

A PME-A fica ainda a saber que os direitos intelectuais são territoriais, ou seja, que uma patente concedida em Portugal, apenas produz efeitos em Portugal, pelo que se pretender proteger o produto noutros países, serão necessários procedimentos diferentes nesses países. Serão necessários patentes e registos de design e de marca nesses países.

Os custos serão elevados. No entanto, a PME-A fica satisfeita com a informação de que a internacionalização da proteção poderá ser diferida no tempo. Poderá começar por apresentar pedidos de proteção apenas em Portugal, tendo depois daqueles pedidos um ano para pedir patentes e seis meses para pedir registos de desenho e registos de marca, noutros países. Os pedidos internacionais e regionais diminuirão os custos e procedimentos.

A PME-A decide avançar com os serviços propostos pelo AOPI. Começam por realizar pesquisas para aferir se a patente e os registos de design e de marca são viáveis. A patente e o registo de design serão, em princípio, concedidos. No entanto, descobrem que já existe uma marca registada semelhante, pelo que o registo da sua marca  deverá ser recusado. A PME-A cria uma nova marca registável. Felizmente, a PME-A não tinha ainda tido custos de marketing em relação à marca não registável.

Os pedidos são apresentados e, com a proteção provisória que conferem, a PME-A introduz, finalmente, o produto no mercado.

 

O exercício dos direitos de propriedade intelectual

As duas PME comercializam produtos que, embora concorrentes, são ambos de sucesso. O produto da PME-B tem uma quota de mercado maior, pois já é comercializado há mais tempo. A PME-A, para além de ter uma quota de mercado inferior, continua a ter custos com a manutenção da propriedade intelectual. Todos os anos tem de pagar a taxa de manutenção da patente, de cinco em cinco anos a taxa do registo de design e de dez em dez terá de pagar a taxa de manutenção do registo de marca. A PME-A continua a duvidar se os custos com a PI valem a pena.

No entanto, uma empresa internacional do setor do calçado, observando o sucesso dos dois produtos das PME, pretende introduzir no mercado produto semelhante, de preferência, juntando as duas tecnologias, escolhendo um dos designs das sapatilhas e usar a sua prestigiada marca internacional.

A empresa internacional realiza auditorias à propriedade intelectual das duas PME e descobre que poderá usar livremente a tecnologia não patenteada e o design não registado da PME-B. Pelo contrário, não poderá usar, sem autorização da PME-A, a sua tecnologia patenteada e o seu design registado.

A empresa internacional apresenta uma proposta à PME-A para adquirir a sua patente sobre a tecnologia das sapatilhas e o registo do design ou, por um valor mais baixo, uma licença de exploração da invenção e design, em exclusividade. Com a transmissão, os direitos de patente e de design registado passariam a ser definitivamente da empresa internacional. Com a licença, os direitos continuariam a ser da PME-A, recebendo esta royalties em troca da permissão de uso em exclusividade daqueles bens intelectuais, por parte da empresa internacional. Considerando os valores propostos, a PME-A aceita a proposta de transmissão. Também os direitos patrimoniais de autor sobre a aplicação e os seus conteúdos são transmitidos, e são-no por um valor mais elevado do que o seriam se não estivessem registados.

A PME-A usa o dinheiro recebido para reinvestir na criação de novos produtos inovadores. Adicionalmente, mantém a sua marca registada, que adquiriu alguma notoriedade no mercado e que poderá usar nos novos produtos que criará.

 


"O uso da invenção por parte da empresa internacional não poderá ser impedido pois a invenção não foi patenteada e já não o poderá ser, pois já foi divulgada".


 

A PME-B observa a sua quota de mercado a diminuir muito rapidamente, com a entrada no mercado do produto da empresa internacional que junta a sua tecnologia com a tecnologia adquirida à PME-A. A PME-B apercebe-se ainda que outras empresas comercializam sapatilhas com design semelhante ao seu.

A PME-B recorre finalmente a um advogado de PI para agir contra a imitação de que a invenção e o design estão a ser alvo. Para revolta da PME-B, o advogado informa que a probabilidade de conseguir  impedir aqueles usos é praticamente nula. O uso da invenção por parte da empresa internacional não poderá ser impedido pois a invenção não foi patenteada e já não o poderá ser, pois já foi divulgada. De modo semelhante, o uso do design por várias empresas também não poderá ser impedido pois não foi registado, não sendo a PME-B titular de qualquer direito de uso em exclusividade sobre ele. Foi por esta razão que a empresa internacional não teve interesse no uso do design da PME-B: qualquer empresa poderá usá-lo. Devido à divulgação e comercialização, o design já não pode ser considerado novo, pelo que já não pode ser registado.

Quando as vendas já quase não são suficientes para pagar as despesas, a PME-B recebe uma carta. A carta é de uma empresa que teve conhecimento que a PME-B usou durante os últimos três anos uma marca idêntica à sua marca registada. Por ter infringido o seu direito de marca, a empresa pede uma indemnização à PME-B. A PME-B nunca registou a marca nem sequer verificou se já havia uma marca idêntica antes de a começar a usar. A empresa tem direito a receber uma indemnização da PME-B. A PME-B declara-se insolvente.

Os administradores da extinta PME-B, depois de alguma indignação, compreendem, por fim, que a regra geral é a da liberdade de imitação e que esta liberdade só é excecionada quando existem direitos de propriedade intelectual (ou em algumas situações muito específicas de concorrência desleal). Entretanto, a PME-A já não é uma PME.


Anterior Próxima