Os países menos desenvolvidos podem, agora, obter com maior facilidade licenças compulsórias em situações de emergência de saúde pública, no entanto, alguns demoram em tirar proveito da alteração. Vítor Palmela Fidalgo da Inventa International explica o motivo.
Decorridos mais de 11 longos anos, a alteração ao acordo sobre os direitos de propriedade intelectual entrou finalmente em vigor. A 6 de dezembro de 2005, o conselho geral da Organização Mundial de Comércio (OMC) adotou a alteração ao protocolo sobre os Aspetos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (TRIPS) (Artigo 31bis), dando aos seus estados membros a opção de a aceitar. O protocolo possibilitou uma maior flexibilidade no que respeita à atribuição de licenças compulsórias especiais para a exportação de medicamentos, a qual foi inicialmente estabelecida numa decisão dos países membros, em 2003, conhecida como Declaração de Doha.
O problema residia no conhecido conflito entre patentes e saúde pública. Com entrada em vigor em 1995, o Acordo TRIPS criou e estandardizou a proteção e aplicação da propriedade industrial para todos os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Esta situação tornou-se uma preocupação para os países menos desenvolvidos, que estariam proibidos de recusar a proteção de patentes farmacêuticas, e de proceder a uma gestão da propriedade industrial de acordo com as suas políticas locais. Quando confrontados com epidemias, como o HIV, ou a malária, seria impossível para estes países comprar e distribuir medicamentos patenteados. Assim, a única solução para este dilema seria adotar o Artigo 31 do Acordo TRIPS, que prevê as licenças compulsórias.
Na sequência de uma profunda discussão entre países desenvolvidos e menos desenvolvidos, em 2001, a Declaração de Doha foi adotada, afirmando-se a flexibilidade do Acordo TRIPS em contornar direitos de patente, de forma a permitir um fácil acesso a medicamentos. Para além de determinar que as emergências de saúde pública estariam dentro dos motivos admissíveis para o licenciamento compulsório, a Declaração de Doha foi mais longe, acabando por admitir o uso do licenciamento compulsório através da exportação. Com efeito, apesar de prever o licenciamento compulsório no Artigo 31(f), o Acordo de TRIPS permitiu apenas o seu uso “preponderantemente para o abastecimento do mercado nacional do membro que autorizou tal uso”.
Neste sentido, devido à falta ou ausência de capacidade de produzir medicamentos, por parte dos países menos desenvolvidos, esta disposição poderia resultar numa situação sem saída para estes países, sendo que, embora estivessem autorizados a emitir licenças compulsórias por motivos de saúde pública, não teriam possibilidade de as utilizar, devido à falta de capacidade de produção. Após a declaração de Doha e a subsequente decisão do conselho, foi aprovada uma alteração permanente ao Acordo TRIPS, através da criação do novo Artigo 31bis. Este Artigo renuncia parcialmente o Artigo 31 (f) para os países menos desenvolvidos, permitindo-lhes emitir licenças compulsórias por motivos de saúde pública, através da importação de medicamentos de outros países. O artigo também contém uma definição aberta de “produtos farmacêuticos” e de algumas formalidades que deverão ser cumpridas pelos países importadores e exportadores, de forma a prevenir a fraude.
Não obstante ter sido promulgado em 2005, este regime teve de ser aceite por 2/3 dos países membros. Após sucessivos adiamentos, esta alteração entrou finalmente em vigor em janeiro de 2017. É, agora, altura de perceber de que forma esta alteração poderá ser efetiva para os países em desenvolvimento, particularmente para os países Africanos, que constituem o grosso das jurisdições nesta categoria.
Até agora, esta alteração foi ratificada por 87 países. No entanto, entre estes, somente 20 são de África, nomeadamente, Benim, Botswana, Burkina Faso, República Centro-Africana, Egito, Quénia, Lesoto, Mali, Maurícias, Marrocos, Nigéria, Ruanda, Senegal, Seicheles, Serra Leoa, África do Sul, Tanzânia, Togo, Uganda e Zâmbia. Para além disso, apenas a Botswana, nas Secções 31 e 32 do seu Código de Propriedade Industrial, prevê uma base legal para este regime.
Mesmo antes da sua incorporação oficial no Acordo TRIPS, este regime legal já havia sido posto em prática em África. Em 2007, Ruanda tornou-se o primeiro país no mundo a notificar a OMC da sua intenção de importar produtos, com base numa licença compulsória. O Canadá foi o país “exportador” escolhido para fornecer medicamentos genéricos a Ruanda. Apesar das longas negociações, a tentativa de acordo falhou, tendo assim a empresa farmacêutica Aptotex sido autorizada pelo governo Canadiano a produzir uma versão genérica de um medicamento para tratar a SIDA, que custaria aproximadamente 0.20 dólares por comprimido, comparado com os equivalentes de marca, que custam 6 dólares. No entanto, o processo revelou-se demasiado burocrático e moroso. O fornecimento dos medicamentos demorou mais de um ano a alcançar Ruanda, apesar de este país ter recebido toda a encomenda em dois envios, em 2008 e 2009.
A forma como os países Africanos poderão beneficiar mais deste regime legal é, de momento, desconhecida. Em primeiro lugar, não está claro o motivo pelo qual apenas 20 países Africanos ratificaram esta alteração ao Acordo TRIPS, uma vez que as suas disposições são especialmente definidas para os países deste continente. A falta de alterações legais internas também seria um problema, tendo em conta que, para alguns países, o Artigo 31bis bis do Acordo TRIPS não é auto executório, o que significa que, sem a implementação da legislação complementar necessária de cada país, não se tornará efetivo de imediato.
Existem, de facto, medidas alternativas para enfrentar crises de saúde pública, que podem ser tomadas, em vez de licenças compulsórias.
As importações paralelas são uma opção. Esta medida envolve a importação, sem o consentimento do titular da patente, de um produto patenteado que tem um preço mais baixo no país exportador. Embora o Artigo 6 do Acordo TRIPS preveja que os estados membros são livres de implementar, ou não, o princípio do esgotamento de direitos internacionais, o conceito é normalmente proibido ou limitado pelas legislações nacionais.
Outra opção poderia ser a adoção de uma estratégia de preços diferencial. Esta estratégia garante que os preços nos países menos desenvolvidos são o mais baixos possível, em comparação com os dos países desenvolvidos, que se mantêm mais altos, não comprometendo os incentivos para a pesquisa e para o desenvolvimento. Não obstante, a estratégia de preços diferencial não é um assunto de Propriedade Industrial e, mesmo quando as grandes empresas farmacêuticas concordam em adotar esta medida nos países mais pobres, o preço praticado continua a ser inacessível para os segundos.
As Licenças compulsórias são a principal ferramenta legal para enfrentar o problema dos preços dos medicamentos patenteados e da saúde pública em África. No entanto, há ainda muito a fazer. Em primeiro lugar, é necessária vontade política, por parte de alguns governos Africanos, para aceitarem a alteração ao Acordo TRIPS e para a implementarem na legislação nacional com a maior brevidade possível. Em segundo lugar, é também necessário alterar a forma como uma licença compulsória é obtida através deste processo, uma vez que a burocracia e a complexidade envolvidas não são compatíveis com a emergência geralmente envolvida nestes assuntos, como, por exemplo, as epidemias. Seria necessário, por exemplo, suprimir o requisito que exige uma tentativa de obter uma licença voluntária, por parte do titular da patente, e de simplificar, ou evitar, as inúmeras notificações requeridas.
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