O direito dos povos indígenas a proteger a sua Propriedade Intelectual

A proteção dos direitos dos povos indígenas, nomeadamente dos seus direitos de propriedade intelectual, conheceu um grande avanço nos últimos anos.

Não sendo objeto de consideração na legislação ou literatura jurídicas, este progresso resulta em grande parte do facto de nunca ter sido tão comum o uso, sem autorização, de nomes, imagens, símbolos ou padrões dos povos indígenas, em produtos comerciais. Incorporar elementos verbais e visuais dos povos indígenas nas marcas ou desenhos e modelos, revelou-se ser um meio eficaz para tornar os produtos mais atrativos, mais distintivos e portanto, com mais valor económico.

Ora, não somente o uso da propriedade cultural dos povos indígenas sem o seu consentimento é economicamente injusto, como este uso pode constituir uma ofensa para os povos indígenas que tradicionalmente atribuírem um significado espiritual e cultural a certas palavras, imagens e padrões.

Era portanto indispensável que fossem tomadas medidas a fim de proteger os direitos económicos e culturais dos povos indígenas.

Numerosos são os exemplos de apropriação cultural, que originaram uma reação forte de alguns povos indígenas na América e Nova Zelândia (1). Todavia nem sempre os casos de sucesso são de fácil exportação, nomeadamente no que concerne aos povos indígenas africanos (2).

 

1. Exemplos de apropriação cultural

 

Nação Navajo vs. Urban Outfitters

A Nação Navajo é um povo indígena que vive da América do Norte. Culturalmente próspera, a Nação Navajo usufrui de grande reputação graças à qualidade e à diversidade das suas artes, nomeadamente, bijuteria, cerâmica, tapeçaria e pinturas.

Consciente do valor económico do nome “Navajo”, a empresa multinacional americana do sector do vestuário, Urban Outfitters, decidiu comercializar produtos nos quais apôs o nome “Navajo” e “Navaho” e reproduzir os padrões tradicionais Navajo, sem a devida autorização.

Ora, sendo a Nação Navajo titular de 86 marcas registadas no Instituto de Marcas e Patentes dos Estados Unidos (USPTO) e usar o nome “Navajo” desde de 1894, ao usar o nome e padrões dos Navajo, a empresa Urban Outfitters, não somente violou os direitos de propriedade intelectual dos Navajo, como também violou a lei federal Indian Arts and Crafts Act.

Esta utilização constituiu igualmente um acto de concorrência desleal e um desrespeito da cultura Navajo pois o nome “Navajo” foi utilizado em roupas interiores e em álcool.

A Nação Navajo viu-se portanto obrigada e intentar uma ação em justiça contra a Urban Outfitters. As partes chegaram finalmente a acordo, em setembro de 2016, obrigando-se ambas a trabalhar em conjunto para comercializar produtos autênticos “Navajo”.

 

Mixe vs Isabel Marant vs Antik Batik

O povo Mixe é um povo indígena do México, instalado nas terras altas, a noroeste do Estado de Oaxaca.

Culturalmente rico, também este o povo foi vítima de apropriação cultural quando, em 2015, a estilista Isabel Marant apresentou, na sua nova coleção, uma blusa com elementos gráficos idênticos aos de uma blusa do povo Mixe de Santa Maria Tlhuitoltepec.

Esta blusa, propriedade cultural da comunidade Mixe, foi não somente copiada pela estilista Isabel Marant, como também a empresa francesa de moda Antik Batik afirmou ser a legal detentora dos direitos sobre o desenho da blusa, intentando, em França, uma acção em tribunal contra a estilista por violação desses direitos.

Do rocambolesco desta situação resultou, por um lado, o não reconhecimento, pelos tribunais franceses, de qualquer direito da estilista e da empresa francesas sobre a blusa, por outro lado, uma declaração firme, não vinculativa mas dissuasiva, do Congresso de Oaxaca.

Com efeito, nesta declaração o Congresso afirmou que a propriedade cultural da comunidade Mixe é Património Cultural Intangível, tal como definido na Convenção da UNESCO para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial; mostrou a preocupação do México em reconhecer o valor cultural das suas comunidades; e assentou a sua determinação em agir a fim de proteger as referidas comunidades de qualquer apropriação cultural.


O caso do povo Maori

O povo Maori é um povo indígena nativo da Nova Zelândia, cuja cultura, rica e variada, inclui artes tradicionais e contemporâneas, tais como escultura, tecelagem, kapa haka (dança de grupo), whaikorero (oratória) e moko (tatuagem), cinema, poesia e teatro.

O uso e proteção, através do registo de marcas, de imagens Maori foi, no passado, relativamente comum. A título de exemplo podemos mencionar uma empresa que registou uma marca composta pelo rosto de um chefe Maori, para assinalar manteiga; outra empresa que registou uma imagem semelhante como marca para assinalar molhos e pepinos.

Concedidas no passado, as mesmas marcas seriam, hoje, rejeitadas, fruto de uma consciencialização deste problema no país.

Com efeito, a legislação na matéria foi modificada e com ela os critérios de registabilidade de uma marca composta por imagens Maori. Em aplicação da nova legislação, o Instituto de Propriedade Intelectual da Nova Zelândia (IPONZ) não pode conceder uma marca se considerar que o seu uso ou registo poderá ofender o povo Maori.

O IPONZ avalia o potencial de ofensa de todos os pedidos de marcas, incluindo abreviaturas de palavras estrangeiras, imagens e padrões e, para que a decisão seja a mais adequada possível, a lei da Nova Zelândia requer que o Instituto solicite o parecer do Comité Consultivo Maori.

Assim, um pedido de marca que seja constituída por um elemento que possa ter alguma ligação à comunidade Maori será desta forma encaminhado para o Comité. Se o Comité considerar que a marca não é ofensiva, a mesma passará para a fase de exame substancial. Se o Comité considerar que a marca poderá ser ofensiva, informa o IPONZ do efeito, devendo este decidir em conhecimento de causa. Convém notar que, bem que o Comité Consultivo Maori tenha apenas um poder de recomendação, o IPONZ raramente decide em discordância com o Comité.

 

2. A particularidade Africana

África, com a sua diversidade de povos, culturas e tradições, fauna e flora, é um continente que habita o imaginário de todos nós. Artistas de todos os sectores encontram em África a inspiração que procuram.

Todavia, cada vez mais empresas vêm em Africa não somente um continente altamente inspirador, como um veículo eficaz para o lucro. Inúmeros são os casos de apropriação cultural em África, sem que qualquer contrapartida ou indemnização a favor dos povos assim expropriados seja prevista.

Alguns povos lesados começaram a organizar-se a fim que os seus direitos culturais e económicos sejam respeitados. Porém numerosos são os povos indígenas em África e muito poucos os países africanos que reconhecem a existência de povos indígenas. Ainda menos são os que o fazem nas suas constituições nacionais ou legislação.

Por vezes em conflito com outros povos indígenas e desprovidos de qualquer representação, a defesa dos seus direitos a nível nacional e internacional torna-se árdua. Acresce que, em termos de direitos de propriedade industrial, não existe atualmente nenhuma legislação que proteja especificamente a identidade cultural desses povos.

Como então proteger os direitos de propriedade intelectual dos povos indígenas africanos?

A primeira solução à qual poderíamos pensar seria de proteger os seus bens culturais, tais como nomes, padrões, músicas e danças, através do registo de marcas, desenhos e modelos e direitos de autor. Ora, esta solução apresenta várias falhas, quatro parecendo-nos ter especial importância:

  • Não tendo nenhuma entidade que os represente, em nome de quem poderiam registar os direitos de propriedade intelectual?
  • Estando já muitos dos seus nomes ou padrões registados em nome de empresas terceiras, os seus próprios pedidos de registo correm o risco de ser recusados.
  • No caso específico das marcas, mesmo que o registo dos seus direitos seja concedido, o seu uso seria preciso, sob pena de as marcas serem declaradas caducas.
  • No caso das marcas igualmente, sendo este registo dividido por classes, seria necessário registar a marca em todas as classes para que a sua proteção fosse completa.

A segunda solução, que nos parece mais eficaz e de execução possível, seria que os Institutos nacionais recusassem toda a marca composta pelo nome de um povo indígena ou desenho e modelo que reproduz um padrão indígena, salvo autorização.

Esta solução, além de materialmente possível, pois bastaria que os Institutos tivessem em sua posse a lista de todos os nomes de povos indígenas e imagens dos padrões de autoria indígena até à data repertoriados, não implicaria, muitas vezes, qualquer alteração da legislação de propriedade intelectual já existente.

Com efeito, os Institutos poderiam recorrer aos artigos referentes à recusa dos sinais e dos desenhos e modelos com alto valor simbólico ou que possam induzir o público em erro, nomeadamente sobre a natureza, qualidades ou proveniência geográfica dos produtos ou serviços.

Não temos conhecimento que alguma vez algum Instituto tenha procedido desta forma, no entanto achamos que é uma via possível e desejável para respeito e proteção dos povos indígenas, do seu modo de vida e cultura.


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