Marcas olfativas... E os perfumes?

Diogo Antunes 19 de janeiro de 2018

Hoje vinha falar-vos sobre marcas olfativas, mas e os perfumes?

No mundo da propriedade industrial, mais concretamente - as marcas -, fez-se um enorme burburinho ao redor da nova Directiva 2015/2436 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Dezembro de 2015, e do novo Regulamento (UE) 2015/2424 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Dezembro de 2015.

O novo regulamento entrou em vigor a 23 de Março de 2016, no entanto algumas disposições apenas entraram em vigor a 1 de Outubro de 2017, uma vez que era necessário que os Institutos nacionais e o próprio Instituto Europeu pudessem se adaptar às novas disposições, nomeadamente o artigo 4º desta regulação.  Para isso foi preciso adaptar os sistemas informáticos e procedimentais para acolher as novas regras de forma efetiva.

Quanto à Nova Diretiva, os Estados membros precisam de transpô-la até ao dia 14 de Janeiro de 2019.

A grande alteração anunciada, pelos Instrumentos comunitários, é a eliminação do requisito de representação gráfica. Como sabemos as marcas não visíveis à luz da Jurisprudência e legislação anterior tiveram inúmeras dificuldades para se demonstrar a sua representação gráfica, já não abordando a questão do caráter distintivo. Dentro dos sinais não visíveis, talvez as marcas sonoras sejam as que menos problemas suscitaram. Quanto às marcas olfativas o Tribunal e o EUIPO, antigo IHMI, tiveram uma interpretação bastante restritiva quanto à representação gráfica deste tipo de marcas.

Esta nova Legislação podia dar um novo fulgor ao registo de sinais não convencionais, nomeadamente as marcas olfativas, no entanto como iremos agora analisar as mudanças anunciadas talvez não tenham trazido nada de novo.

A Jurisprudência que determinou todo o entendimento sobre a representação gráfica das marcas olfativas remonta ao famoso caso SIECKMANN.  

O requerente pretendia registar a marca olfativa “odor balsâmico-frutado com ligeiras notas de canela” para vários serviços das classes 35,41 e 42 (tais como, restauração, publicidade, serviços de agricultura entre outros.)

O requerente juntou a descrição do odor “substância química pura cinamato de metilo (éster metílico de ácido cinâmico), uma amostra do odor e a respetiva fórmula química.

C6H5-CH = CHCOOCH

O Tribunal começou por dizer que as marcas olfativas podem ser registadas desde que cumpram os requisitos previstos para as marcas. Quanto à representação gráfica, esta deve permitir que o sinal possa ser representado visualmente, nomeadamente através de figuras, linhas ou caracteres, de modo que possa ser identificado com exatidão, e que essa representação seja clara, precisa, completa por si própria, facilmente acessível, inteligível, duradoura e objectiva.

O Tribunal afirmou que requisito da representação gráfica tem como função definir a própria marca e o escopo de proteção da mesma, de maneira a que seja possível determinar o objeto exato da proteção conferida.

Feitas estas considerações o Tribunal considerou que a Fórmula química, a descrição do odor, a apresentação de uma amostra de um odor e a conjugação de todas estas evidências não cumpriam o requisito de representação gráfica.

Em traços gerais, considerou que a descrição ainda que gráfica não era suficientemente clara, precisa e objetiva. Que uma amostra de um odor não é suficientemente estável ou duradoura, podendo haver oscilações devido às temperaturas, altitudes ou simplesmente com o passar do tempo. E quanto à fórmula química poucas pessoas reconheceriam, nessa fórmula, o odor em questão.

Antes deste pedido de marca comunitário só um é que havia sido concedido, o famoso caso das bolas de ténis com cheiro a relva cortada. No entanto este caso foi decidido pela câmara de recurso do IHMI e não pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. Por isso nunca saberemos se o entendimento do Tribunal seria contrário ao do Instituto.

O certo é que do Acórdão Sieckmann em diante mais nenhuma marca olfativa foi concedida na União Europeia. [1]

Agora vejamos o artigo do Regulamento que aboliu com o requisito da representação gráfica:

Article 4

Signs of which an EU trade mark may consist

An EU trade mark may consist of any signs, in particular words, including personal names, or designs, letters, numerals, colours, the shape of goods or of the packaging of goods, or sounds, provided that such signs are capable of:

 

(a)distinguishing the goods or services of one undertaking from those of other undertakings; and

(b) being represented on the Register of European Union trade marks, (“the Register”), in a manner which enables the competent authorities and the public to determine the clear and precise subject matter of the protection afforded to its proprietor.’.

 

Como podemos constatar o artigo refere que, embora não graficamente, a representação deve ser clara e precisa para se aferir a respectiva protecção. Ora isto são conclusões retiradas do Acórdão Sieckmann a respeito da representação gráfica. E por incrível que pareça o cenário é bastante mais caricato se analisarmos o considerando nº 13 da Directiva e nº 9 do Regulamento reparamos o seguinte:

 

“…A sign should be permitted to be represented in any appropriate form using generally available technology, and thus not necessarily by graphic means, as long as the representation is clear, precise, self-contained, easily accessible, intelligible, durable and objective.”

13º “…In order to fulfil the objectives of the registration system for trade marks, namely to ensure legal certainty and sound administration, it is also essential to require that the sign is capable of being represented in a manner which is clear, precise, self-contained, easily accessible, intelligible, durable and objective.”

Como podemos analisar a legislação Europeia adoptou a interpretação da representação gráfica que o Tribunal adoptou na sua jurisprudência mas eliminou da representação a necessidade de ser gráfica. Ora, parece-nos que eliminar um conceito e colocar a sua interpretação não é de todo impor uma mudança no sistema. No entanto, não pretendemos demonizar as alterações. Ao supor que a representação possa ser feita por outros meios tecnológicos, salta-nos à mente um exemplo provável num futuro próximo: Se os aparelhos eletrónicos conseguirem projetar odores, por exemplo, o consumidor teria facilmente acesso ao odores que se pretendiam registar, bastando clicar apenas num botão. O que significa que a representação do odor no registo seria uma representação direta e não fornecida por meios indiretos (o que pesa a favor da sua devida representação), contudo continuaria a ser um tema bastante discutível se continuarmos com os requisitos apertados impostos pela Jurisprudência Sieckmann.

Por falar em odores, e dando sentido à frase inicial deste artigo, onde é que ficam os perfumes no meio disto tudo? Os perfumes são capazes de ser os produtos mais ingratos na propriedade intelectual. Todos os Direitos possíveis tendem a afastar-se da sua protecção.

Contra a sua protecção através de marca está o entendimento discutível que o odor não pode ser um atributo nem característica natural dos produtos. O que significa que o odor não pode valer de si próprio. É esse entendimento que, por exemplo, podemos constatar que no Trademark Manual of Examining Procedure “Examining attorneys should also consider the functionality doctrine in relation to other types of non-traditional marks, such as scent. For example, an application to register scent for an air freshener…”

Esta doutrina disseminou-se e aboliu com todas as esperanças de uma proteção por via das Marcas da indústria dos perfumes.

E por uma patente? Nos Estados Unidos é possível patentear a formula de um perfume, existe mesmo uma classe ( 512)[2] que guia as patentes de perfumes.

O grande problema da proteção por uma patente de um perfume é que as empresas seriam obrigadas a revelar ao público a fórmula protegida pela patente, e teria apenas um exclusivo de 20 anos. Podendo os seus concorrentes através de engenharia reversa adaptar a fórmula, ou passado os 20 anos de protecção copiá-la.

Só nos resta pelos Direitos de Autor.

Em França no caso Bsiri-Barbir v. Haarmann & Reimer (Cour de Cassation, Paris, France [2006] E.C.D.R. 28, o Tribunal decidiu que a elaboração de um perfume apenas envolvia um conhecimento técnico e que não preenchia os requisitos de protecção de uma obra. Radicalmente o Tribunal Holandês no caso Lancôme v. Kecofa[3] aceitou que um perfume pode ser protegido por Direitos de autor. O Tribunal veio dizer que a lista legal que continha várias obras não era exaustiva, e que o conceito de obra é geral e não restringe os odores. Para estar sujeito a proteção basta que seja percecionado, tenha caráter original e que tenha um cunho pessoal do criador.

O Tribunal acrescentou ainda que algumas disposições da lei teriam de ser adaptadas para a realidade dos perfumes, nomeadamente a utilização livre por parte dos consumidores. Resta salientar que o se protege neste entendimento do Tribunal é a substância que dá origem ao perfume, isto porque o odor, quando liberto é bastante volátil e incerto. Com certeza que a proteção pelo Direito de Autor cria imensos problemas, mas consegue resolver o mais fundamental – a falta de protecção.

Devo concluir que deve haver um entendimento comum sobre a maneira mais eficaz de se proteger um perfume. Os perfumes têm uma forte presença global, é uma área muito competitiva e não tem a protecção que merece.

 


[1] Decisão da Primeira Câmara de Recurso de 24 de Maio de 2004

   Decisão de 12 de Dezembro da quarta câmara de recurso 2005

   Decisão da Quarta Câmara De Recurso do IHMI de 19 de Janeiro 2004

   And see the trademark No.: 000521914

                                                      001254861

                                                      001122118

                                                       003132404

                                                      000566596

                                                      001807353

[2] https://www.uspto.gov/web/patents/classification/uspc512/defs512.htm

[3] Hoge Raad (Dutch Supreme Court) 16 June 2006, Kecofa v. Lancôme, case C04/327HR


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