O que mudou na PI nos últimos 50 anos? - A sincronização acelerada do mundo

A propriedade intelectual

A consultora de propriedade intelectual (PI) Inventa completou 50 anos. A propósito desta celebração propusemo-nos observar o que mudou na PI nas últimas cinco décadas. A propriedade intelectual é uma área do sistema jurídico que regula o uso de coisas intelectuais. As normas de PI preveem que várias coisas intelectuais podem ser objeto de direitos de propriedade intelectual. Uma obra artística pode ser objeto de direito de autor, uma marca pode ser objeto de direito de marca, uma invenção pode ser objeto de um direito de patente e o design de um produto pode ser objeto de direito de desenho ou modelo. Estes direitos consistem, essencialmente, em o seu titular poder usar aquelas coisas em exclusividade, durante um período de tempo.

O sistema jurídico regula quase totalmente as situações com relevância jurídica. No entanto, à medida que as situações evoluem, por vezes, o sistema jurídico necessita de se adaptar. O mundo mudou muito nos últimos 50 anos, pelo que o sistema jurídico e, em especial, a normas de PI, também mudaram.

 

A globalização e a evolução das normas de PI supranacionais

A globalização e o comércio internacional intensificaram-se. Este facto colidiu com um dos princípios da PI que é o da territorialidade. Em quase todos países, os direitos intelectuais são territoriais. Isto significa, por exemplo, que uma patente concedida a uma invenção num determinado país, confere ao seu titular um direito de uso exclusivo dessa invenção apenas nesse país. Se esse titular tiver interesse em comercializar o seu produto em exclusividade noutros países, terá de obter uma patente em cada um desses outros países. É evidente que este princípio da territorialidade, que se mantém, é um obstáculo à internacionalização da proteção. Também o eram as diferenças das legislações nacionais. Consequentemente, surgiram tratados internacionais com o propósito de facilitar a internacionalização e aproximar as legislações nacionais.

De acordo com a base de dados da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) existem 208 tratados internacionais que regulam matérias com alguma relação com a PI.  De 208 tratados, 48 foram adotados antes de 1970, e os restantes 160, foram adotados após aquela data.

O gráfico abaixo demonstra que o crescimento do número de tratados foi acentuado nas últimas décadas, especialmente nas de 1990 e 2000.

Fonte. © Inventa International

 

Este crescimento é também verificado em relação aos tratados de PI, ou seja, tratados que têm por objeto principal a PI. De acordo com a referida base de dados da OMPI estes tratados são 77, tendo sido adotados 27 até 1969 e 50 desde 1970. Ou seja, desde 1970 foram adotados quase o dobro dos tratados de PI que tinham sido adotados até essa data.

Fonte. © Inventa International

 

A análise por década mostra que a de 2010 foi a de maior produção de tratados de PI, seguida pelas de 90 e 70.  Isto mostra uma tendência crescente.

Fonte. © Inventa International

 

Apesar de alguns dos tratados de PI mais importantes terem mais de um século, como são a Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial (1883), a Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, (1886), e o Acordo de Madrid Relativo ao Registo Internacional de Marcas (1891), ou quase um século, como o Acordo de Haia Sobre o Depósito Internacional de Desenhos Industriais (1925), a intensificação do comércio global nas últimas décadas levou à intensificação da aproximação das legislações nacionais em matéria de PI e à facilitação da internacionalização, através de novos tratados e outras fontes de Direito supranacionais.

Alguns dos mais importantes tratados de PI foram adotados nos últimos 50 anos. Em 1970 foi adotado o Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes, com a finalidade de, entre outras, de acordo com o seu preâmbulo, “simplificar e tornar mais económica a obtenção de proteção das invenções quando a mesma for requisitada em vários países.” Em 1989 foi adotado o Protocolo referente ao Acordo de Madrid Relativo ao Registo Internacional das Marcas, visando tornar o sistema de Madrid mais flexível e mais compatível com as legislações domésticas de alguns países ou organizações intergovernamentais que não tinham sido capazes de aceder ao Acordo. É este Protocolo que atualmente permite o registo internacional de marcas, possibilitando que, com um só pedido, uma marca seja registada em vários países, reduzindo os procedimentos e custos. Em 1994 foi adotado o Acordo sobre aspetos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio, com o desejo de, entre outros, “reduzir distorções e obstáculos ao comércio internacional”, reconhecendo ser para tal necessário o “estabelecimento de padrões e princípios adequados relativos à existência, abrangência e exercício de direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio”.

A evolução também aconteceu a nível regional. Em 1973 foi adotada a Convenção da Patente Europeia que estabeleceu a Organização Europeia de Patentes (EPO) e a possibilidade de se obter uma patente europeia. Também na Europa, com a Comunidade Europeia surgiu a marca e o desenho registado comunitários, que permitiu a proteção de marcas e designs de produtos no território da agora União Europeia (UE), com apenas um pedido e um procedimento. Nas últimas décadas, as normas de harmonização da UE tornaram as normas de PI dos Estados-membro muito próximas, e, em muitos aspetos, idênticas.

Em África, em 1976 foi adotado o Acordo de Lusaka para a criação da Organização Regional Africana da Propriedade Intelectual (ARIPO), e, em 1977, foi adotado o Acordo de Bangui relativo à criação da Organização Africana de Propriedade Intelectual (OAPI). Em 1994 foi adotada a Convenção da Patente Euroasiática, que estabeleceu a Organização Euroasiática de Patentes (OEAP). Na Ásia, em 1995 foi adotado o Acordo ASEAN sobre Cooperação em Propriedade Intelectual.

 

As novas realidades e a atualização das normas de PI

Mas as alterações às normas de PI não se deveram exclusivamente aos objetivos de harmonização global e regional das normas de PI e de facilitação da proteção internacional e regional. Outras mudanças, para além da intensificação do comércio internacional, obrigaram à adaptação das normas de PI.

As mudanças foram sobretudo tecnológicas. Regra geral, as normas de PI existentes são capazes de oferecer proteção adequada a novas tecnologias. Se uma patente, um registo de design e um direito de autor só podem ser atribuídos a uma invenção, a um design e a uma obra que sejam novos, a novidade é um pressuposto do sistema de PI, pelo que o sistema está preparado para a inovação, porque existe, precisamente, para ela. No entanto, o sistema está preparado para coisas destas que sejam novas e não para outro tipo de coisas. Ou seja, está preparado para obras artísticas, invenções e designs que sejam novos, mas não está preparado para coisas novas que não sejam obras, invenções e designs.

Os programas de computador, por exemplo, foram umas das principais coisas que as normas de PI tiveram que passar a regular. No entanto, não foi necessária a criação de um novo direito. Os programas de computador foram equiparados a obras e protegidos por direito de autor. Nas situações em que consistam em invenções técnicas, são cumulativamente protegidos por patente.


"Estas coisas intelectuais, não sendo obras, não sendo invenções, não sendo sinais distintivos do comércio, nem sendo o aspeto determinado por razões estéticas de um produto, não podiam ser protegidas pelos direitos de propriedade intelectual já existentes. A solução, em alguns países como Portugal, foi a criação de um direito específico."


No entanto, novas tecnologias consistiam em coisas que não podiam ser reconduzidas às coisas suscetíveis de proteção pelos direitos de PI existentes. Um exemplo são as topografias de produtos semicondutores. Estas coisas intelectuais, não sendo obras, não sendo invenções, não sendo sinais distintivos do comércio, nem sendo o aspeto determinado por razões estéticas de um produto, não podiam ser protegidas pelos direitos de propriedade intelectual já existentes. A solução, em alguns países como Portugal, foi a criação de um direito específico.

Mas a inovação tecnológica não resultou apenas em novas coisas que necessitavam de proteção. A inovação tecnológica resultou, sobretudo, em novos meios de utilização de coisas intelectuais. Se a televisão e o rádio, possibilitaram novas formas de utilização de obras, através da emissão e radiodifusão, a internet fez depois o mesmo, mas de modo mais intenso e extenso. Nas últimas décadas destes últimos 50 anos, as adaptações mais importantes das normas de PI foram devidas ao uso de coisas intelectuais na internet. Se uma empresa de um determinado país cria uma loja online em que usa a sua marca registada na UE, estará, em princípio, a usar a sua marca em qualquer país com acesso à loja online. Se noutro país existir marca igual registada, haverá, potencialmente, infração de direito de marca. A internet possibilitou também a disponibilização ao público de obras protegidas por direito de autor. Consequentemente, possibilitou não apenas novos modos de retribuição aos titulares dos direitos de autores, como também novos modos de infração daqueles direitos.

Nos últimos anos, tem sido sobretudo o uso online de obras protegidas por direito de autor, também ele um problema global, a estar na origem de novas normas de PI. Exemplos disto são as diretivas da UE  n.º 2014/26/UE, de 26 de fevereiro de 2014, “relativa à gestão coletiva dos direitos de autor e direitos conexos e à concessão de licenças multiterritoriais de direitos sobre obras musicais para utilização em linha no mercado interno” e n.º 2019/790, de 17 de abril de 2019 “relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital”, adotada devido, segundo o seu preâmbulo, à “rápida evolução tecnológica [que] continua a mudar a forma como as obras e outro material protegido são criados, produzidos, distribuídos e explorados”, e por continuarem “a surgir novos modelos empresariais e novos intervenientes”.

 

Os próximos 50 anos

Não é possível prever o que vai acontecer à PI nos próximos 50 anos, pois a velocidade da mudança é cada vez maior. Este aumentar de velocidade é refletido nas normas de PI, alterando-as, e é refletido pela evolução do volume crescente das normas de PI supranacionais e regionais. Estando os cientistas do Direito cada vez mais em contacto e sendo os problemas jurídicos da PI cada vez mais globais, a tendência deverá ser para a aceleração da harmonização das normas de PI, embora, a alguma porosidade ideológica a que esta área está sujeita, possa atrasar aquela harmonização ou mesmo manter algumas diferenças.


Anterior Próxima