A evolução das Patentes de Software na Europa

Os programas de computador surgem na alínea c) do n.º 2 do art. 52º da Convenção sobre a Patente Europeia, de 1973 como matéria que não pode constituir uma invenção. No entanto, em 2005, o Instituto Europeu de Patentes (IEP) tinha já concedido mais de trinta mil patentes relacionadas com programas de computador e, atualmente, as invenções implementadas por computador são o objeto de aproximadamente 35 % dos pedidos de patente europeia.

 A justificação reside na norma prevista no nº 3 do referido artigo, que prevê que os programas de computador, bem como todas as matérias previstas no mesmo n.º 2, não serão excluídos da patenteabilidade a não ser que «o pedido de patente europeia ou a patente europeia se refira a um desses elementos considerado como tal».

A determinação dos limites da patenteabilidade das invenções implementadas por computador na Europa resulta, essencialmente, das decisões das Câmaras Técnicas de Recurso (CTR) do IEP e da interpretação naquelas fixada, das normas relevantes.

Embora as decisões das CRT não sejam vinculativas para além da instância em que são proferidas, elas são tomadas como guia pelos examinadores e por outras CRT.

Complementarmente, quando determinada interpretação se torna estável na jurisprudência das CRT, esta é transposta para as Guidelines for Examination do IEP, tornando-se assim integrada na prática. Igualmente ou mais importante, para além dos institutos de propriedade industrial nacionais, também os tribunais dos países europeus, quando confrontados com casos já examinados pelas CRT à luz da CPE, tentam interpretar e aplicar a lei de acordo com os mesmos valores. Dada esta importância, este texto faz referência a algumas decisões importantes das CRT nesta matéria.

 

a) A interpretação das Câmaras de Recurso Técnicas do caso VICOM aos casos IBM de 1998 e 1999

Embora a CPE date de 1973, o IEP apenas começou a receber pedidos de patente europeia em 1977. Aproximadamente dez anos depois, surgia uma decisão de uma CRT que constituiria a base da evolução da jurisprudência do IEP em relação às invenções implementadas por computador. Essa decisão foi a tomada no caso T 208/84 VICOM - Invenção relacionada com computador, de 15 de Julho de 1986, com que iniciaremos esta análise.

Desde esta decisão, durante mais de duas décadas, até ao caso T 1173/97 IBM - Produto de programa de computador, de 1 de julho de 1998, imperou na jurisprudência das CRT, como será visto abaixo, um entendimento usualmente designado por «abordagem da contribuição técnica». Assim, este ponto abordará três decisões emitidas nesta fase.

  • T 208/84 VICOM - Invenção relacionada com computador, de 15 de Julho de 1986. Nesta decisão foi analisada a invenção objeto do procedimento de pedido de patente europeia n.º 79300903.6 (EP0005954), com o título «Método e aparelho para processamento de imagem digital melhorado», com data de pedido de 22 de Maio de 1979. A invenção objeto deste pedido de patente, que reivindicava prioridade de um pedido de patente anterior nos EUA, compreendia um método e um aparelho para o processamento digital de imagens em que os pontos de uma imagem eram representados em duas sequências de imagens bidimensionais que levavam a cabo um método matemático e que, particularmente, tornava mais rápido o referido processamento. Neste caso, decidiu a CRT que ainda que a ideia subjacente a uma invenção consista num método matemático, se esse método é usado num processo técnico e uma reivindicação seja dirigida a esse processo em que o método é usado, não pode considerar-se que a invenção consiste num método matemático como tal e que determinante é a contribuição técnica da invenção como definida nas reivindicações considerada como um todo, para o estado da técnica.
  • T 26/86 KOCH & STERZEL - Aparelho raio-X, de 21 de maio de 1987. Uma das primeiras decisões das CRT, sobre este tema, posteriores à decisão VICOM, foi a que concluiu o procedimento de pedido de patente europeia n.º 78101198.6 (EP0001640), «Aparelho raio-X», apresentado a 23 de outubro de 1978 - a decisão T 26/86 KOCH & STERZEL - Aparelho raio-X, de 21 de maio de 1987. A invenção em questão consistia num aparelho de raio-X cuja operação era controlada por um programa de computador que permitia, evitando sobrecarga, atingir o máximo desempenho daquele aparelho. Deste caso importa sobretudo reter que a CRT determinou que os objetos que consistam numa mistura de características técnicas e não técnicas podem ser patenteáveis.
  • T 769/92 SOHEI - Sistema de gestão universal, de 31 maio de 1994. A invenção objeto desta decisão consistia num sistema de computador para tipos plurais de gestão independente, incluindo, pelo menos, gestão financeira e de inventário. A salientar desta decisão da CRT: uma invenção que compreenda características funcionais implementadas por software não é excluída da proteção, se para a solução do problema resolvido pela invenção são necessárias considerações técnicas. Estas considerações técnicas conferem natureza técnica à invenção, na medida em que implicam um problema técnico a ser resolvido pelas características técnicas implícitas.

Conforme referido, é usualmente considerado que estas (entre outras) primeiras decisões das CRT constituem a designada fase da «abordagem da contribuição técnica». Esta denominação deve-se à referência nalgumas das decisões acima apresentadas que o art. 52º da CPE apenas permitiria a patenteabilidade daquelas invenções que envolvessem uma contribuição técnica numa área não excluída da patenteabilidade. Ou seja, nesta fase, na análise da exclusão por via do art. 52º/2 seriam tidos em consideração os requisitos de patenteabilidade da novidade e atividade inventiva, para que fosse aferido o contributo.

 

b) Os casos IBM de 1998 e 1999

O fim da «abordagem da contribuição técnica» foi fixado no caso T 1173/97 IBM -Produto de programa de computador, de 1998, dando lugar à «whole contents approach», que pode ser apresentada como a não exclusão por força do art. 52º/2 da CPE, das reivindicações que consistam numa mistura de elementos excluídos e não excluídos, e em que a relevância dos elementos excluídos e não excluídos é posteriormente tratada na análise dos requisitos da novidade e atividade inventiva.

  • T 1173/97 IBM - Produto de programa de computador, de 1 de julho de 1998. A invenção objeto do pedido de patente europeia n.º 91107112.4 (EP0457112), de 2 de maio de 1991, consistia na ressincronização assíncrona de um procedimento de autorização. Este pedido continha reivindicações independentes de atividade e de entidade. A reivindicação 1 dizia respeito a um método, a reivindicação 14 definia um sistema de computador e as reivindicações 20 e 21 definiam a entidade objeto da proteção pretendida como «produto de programa de computador». Começa a CRT por afirmar que um programa de computador não tem carácter técnico apenas por ser um programa de computador, pelo que as modificações físicas do hardware derivadas da execução das instruções dadas pelos programas de computador não podem, por si só, constituir o carácter técnico exigido, na medida em que tais modificações são comuns a todos os programas de computador, pelo que não seriam suscetíveis de distinguir um programa de computador com carácter técnico de um programa de computador como tal. A CRT define então que se aquele efeito técnico comum não pode relevar, é necessário identificar um efeito técnico adicional, resultante da execução das instruções de um programa. Se este efeito adicional tem carácter técnico ou resolve um problema técnico poderia a invenção ser patenteável. Assim, uma patente poderia ser concedida não apenas no caso de uma invenção em que um programa de computador gere, por meio de um computador, um processo industrial ou o funcionamento de uma máquina industrial, mas também nos casos em que um programa de computador é o único meio ou um meio necessário de obter um efeito técnico, por exemplo, no funcionamento interno de um computador. Foi assim criado o critério do efeito técnico adicional.

Por fim, a CRT referiu-se à inevitável questão da admissibilidade de reivindicações dirigidas a produtos programas de computador. Em relação a esta questão a CRT considerou que, desde que um produto de programa de computador quando executado num computador produza um efeito técnico, não haverá justificação para distinguir um efeito técnico direto de um efeito técnico indireto, ou seja, a possibilidade de produzir um efeito técnico. Assim, um programa de computador teria carácter técnico por ter a possibilidade de causar um predeterminado efeito técnico adicional. Nestes termos, um produto de programa de computador que implicitamente compreenda todas as características de um método patenteável não será, em princípio, excluído. Uma reivindicação que seja formulada de modo a compreender características funcionais será admitida, e o escopo de proteção será definido em termos da função realizada pelo programa de computador conforme descrito na reivindicação.

 

  • T 935/97 IBM - Produto de programa de computador II, de 4 de fevereiro de 1999. A invenção objeto do pedido de patente europeia n.º 96305851.6 (EP0767419), de 9 de agosto de 1996, consistia num método e sistema para a exibição de informação previamente escondida num ambiente de janelas de um sistema de processamento de dados. Neste caso, para além de repetir as considerações realizadas pela CRT na decisão anterior, foi fixado que a determinação da contribuição técnica que uma invenção confere ao estado da técnica seria uma questão de análise dos requisitos da novidade e atividade inventiva, não devendo relevar na análise da exclusão prevista no art. 52º da CPE.

Resulta claramente destes casos o abandono da abordagem da contribuição técnica e a adoção da «whole contents approach». Assim, a partir destas decisões, no exercício de identificação de uma invenção nos termos do art. 52º da CPE, bastaria a identificação de características técnicas na matéria reivindicada, não sendo necessário verificar quais as características novas e inventivas, pois esta tarefa deveria ser reservada para a análise dos requisitos de patenteabilidade, a ser realizada numa fase posterior.

Adicionalmente, resulta dos casos IBM acima apresentados, que as reivindicações dirigidas a produtos de programa de computador devem ser admitidas desde que quando executados num computador produzam um efeito técnico. No entanto, o efeito técnico no caso dos programas de computador tem de ser um efeito técnico adicional, para além do efeito das interações físicas que ocorrem normalmente entre o programa e o computador.

 

c) A interpretação das Câmaras de Recurso após os casos IBM de 1998 e 1999

Se nos casos anteriores a «abordagem da contribuição técnica» tinha sido abandonada, a recém adotada «whole contents approach» seria nos casos posteriores desenvolvida, expandindo-se, e ganhando nova designação como «abordagem de quaisquer meios». Se a questão da patenteabilidade das invenções implementadas por computador centrava-se agora sobretudo na análise do requisito da atividade inventiva, os casos que se seguem debruçam-se essencialmente sobre a aplicação deste requisito.

  • T 641/00 COMVIK - Duas identidades, de 26 setembro de 2002. A invenção analisada neste caso dizia respeito a sistemas digitais de telefones móveis, em particular ao uso de um cartão de circuito integrado multi-identidade de utilizador único como módulo de identificação de assinante de uma unidade móvel de um sistema do tipo GSM. Desta decisão deve ser retido que a atividade inventiva de uma invenção que consista na mistura de características técnicas e não técnicas deve ser analisada tendo em consideração as características que contribuem para o carácter técnico da invenção, desconsiderando as características que não conferem tal contributo. Esclareceu a CRT que o problema técnico a ser resolvido não dever ser formulado contendo indicações da solução ou antecipando-a parcialmente. Contudo, características que constem de uma reivindicação, e assim da solução, não deixam por isso, automaticamente, de poderem aparecer na formulação do problema. Se uma reivindicação se refere a um objetivo a ser atingido numa área não técnica, este objetivo pode aparecer na formulação do problema como parte do enquadramento do problema técnico a ser resolvido.
  • T 154/04 DUNS LICENSING ASSOCIATES - Estimar atividade de vendas, de 15 novembro 2006. A invenção objeto do pedido de patente europeia n.º 94912949.8 (EP0695445) de 5 de abril de 1994, recusado pela Divisão de Exame, dizia respeito a um sistema e a um método adequado a estimar as vendas ou a distribuição de produtos de um ponto de venda sem reporte à unidade central, com base em amostras de dados de vendas de pontos de venda com reporte à unidade central, com maior precisão do que os obtidos por sistemas e métodos anteriores. Neste caso, a CRT, depois de reafirmar e desenvolver o critério adotado pela CRT na decisão COMVIK, fixou que os passos de recolher e avaliar dados como parte de um método de pesquisa para negócios não conferem caráter técnico ao método, se tais passos não contribuem para a solução técnica de um problema técnico, pelo que não poderiam relevar na análise da atividade inventiva.

A análise da atividade inventiva é o cerne da patenteabilidade das invenções implementadas por computador. Assim é pois a identificação de uma invenção não oferece grandes obstáculos, na medida que basta a identificação de elementos técnicos. A análise da atividade inventiva, conforme resultou do caso COMVIK, deve ser aferida tendo em consideração apenas as características técnicas de uma invenção, ou seja, as que contribuem para o carácter técnico da invenção (não se confunda com contributo para o estado da técnica), podendo as características não técnicas aparecer na formulação do problema técnico como parte do enquadramento do problema técnico a ser resolvido.

Esta evolução aqui apresentada culminou na decisão da Grande-Câmara de Recurso G 3/08 - Programas de computador, de 12 maio 2010, que pouco acrescentou a estas decisões, reafirmando-as.

 


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