Expressões culturais tradicionais, uma proteção além do direito de propriedade intelectual

Vera Albino 6 de março de 2018

John Steinbeck, numa das suas obras, questionara-se “Without our past, how will we know its us?” Também João de Barros dizia “o homem sem memória tem entendimento de menino.

A preservação do nosso passado, feito de narrações e exposições de factos e feitos memoráveis, é preocupação comum desde que de tempo há memória. Caracterizado por feitos históricos, é também exteriorizado por formas artísticas, nomeadamente expressões culturais tradicionais.

De acordo com a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO, de 2005, “expressões culturais tradicionais”, são as expressões “que resultam da criatividade de indivíduos, grupos e sociedades e que possuem conteúdo cultural”.

Intencionalmente vaga e abrangente, esta definição convida-nos a identificar expressões culturais pertencentes a esta categoria. Assim, no conceito de expressões culturais podemos incluir expressões imateriais, exteriorizadas por palavras (contos, poesia), musicais (canções), corporais (danças, rituais), bem como expressões materiais tais como pinturas, esculturas, artesanato e vestuário.

As expressões culturais tradicionais fazem parte do património cultural dos povos, regiões e da humanidade, na medida em que elas são testemunha de um conjunto de bens culturais aos quais são atribuídos significados identificadores.

Relembramos que “Património” vem do latim pater, que significa “pai”, etimologicamente “o que vem dos pais”, e evoca o conjunto de bens (ativos e passivos) que uma pessoa recebeu como herança e que deverá gerir como um bom pai de família a fim de o transmitir aos seus descendentes.

O direito de propriedade intelectual demonstrou ser um mecanismo possível de gerência e transmissão do património, nomeadamente cultural, protegendo-o do seu uso e reprodução não autorizados, apropriação indevida e outras formas de exploração ilícita.

Com efeito, o direito de propriedade intelectual torna possível a proteção das expressões culturais tradicionais através dos registos de direitos de autor e direitos conexos, de indicações geográficas, denominações de origem, de marcas e de desenhos e modelos.

Assim, as adaptações contemporâneas do folclore são passíveis de proteção através dos direitos de autor, enquanto as músicas tradicionais podem ser abrangidas pelo Tratado da OMPI sobre as Prestações e Fonogramas e pelo tratado de Pequim sobre Interpretações e Execuções Audiovisuais. Também o registo de marcas pode ser usado para identificar artes tradicionais, como disso é exemplo a proteção da palavra “Maori” na Nova Zelândia.

O direito de propriedade intelectual confere direitos de propriedade exclusiva a fim de permitir o controlo da exploração comercial das expressões culturais tradicionais pelos criadores, estabelece uma proteção moral sobre os mesmos bens, evitando a sua expropriação por terceiros e impedindo concorrência desleal.

Todavia, a proteção das expressões culturais tradicionais através do direito de propriedade intelectual contém o risco de transformar estes bens em simples mercadorias, colocando em segundo plano a importância que tais bens possuem tanto a nível simbólico como identitário.

A proteção através dos direitos de propriedade intelectual introduz também uma lógica de autoria, uma dinâmica microeconómica e conceitos jurídicos que são, muitas vezes, inadaptados à particularidade das expressões culturais tradicionais.

Pois, o património cultural não somente tem um valor artístico incontestável, como também é portador de uma identidade que ultrapassa o seu próprio criador e forma um modelo cultural comum, favorizando o reconhecimento de um grupo que partilha o mesmo sentimento de pertença.

Intelectuais, tais como Giannini e Sandulli, põem em relevo o carácter primordial do valor cultural, valor este que é imaterial em relação a materialidade da coisa. O bem cultural é deste modo dual: é coisa, material, e é cultura, imaterial. Em suma, o bem cultural é destacável da coisa que lhe serve de suporte no sentido em que este tem valor próprio, cuja titularidade pertence à comunidade enquanto bem de fruição, o que justifica a sua proteção.

A complexidade desta questão torna-se mais clara quando analisamos o conceito de bem cultural. De acordo com os trabalhos da Comissão FRANCESCHINI, constituída em Itália pela Lei n.º 310, de 26 de Abril de 1964 para avaliar a proteção e valorização dos objetos de interesse histórico, artístico, arqueológico e paisagístico, o bem cultural é “il bene che constituiria testimonio materiale avente valore di civilitá”.

Assim, a distinção entre bem público e bem privado não é relevante no que respeita ao bem cultural, optando por centralizar o regime jurídico do património no objeto e não no seu titular. Este avanço é primordial pois permite restrições ao direito de propriedade em razão do carácter cultural da coisa.

O conceito de interesse público do bem permite clarificar a definição de bem cultural. Neste conceito reúnem-se todos os bens que, não obstante a titularidade pública ou privada, têm uma utilidade social que justifica a aplicação de um regime jurídico específico. Assim, à preeminência da propriedade é substituída uma qualidade de não apropriável que está intimamente ligada à história e à cultura.

Nesta medida, o direito de propriedade intelectual que instaura uma proteção da propriedade, bem que temporária, do bem cultural, não nos parece ser o regime jurídico mais adequado para a proteção e preservação das expressões culturais tradicionais. No nosso entender, é necessário refletir sobre um regime jurídico nacional único, capaz de responder a todos os desafios que esta questão engloba, regime este que, no nosso conhecimento, ainda não existe.


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